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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Una Mujer Fantástica (2017)

Daniela Vega como Marina Vidal em Una Mujer Fantástica de Sebastián Lelio, 2017


Somos apresentados a diferentes histórias sobre pessoas transsexuais, especialmente sobre mulheres trans. Transamérica (2005); Laurence Anyways (2012); Dallas Buyers Club (2013) e The Danish Girl (2015) são alguns exemplos de filmes que nos ensinam algumas lições relevantes sobre elas. No entanto, suas histórias são principalmente protagonizadas por atores cisgêneros, e isso não é bom. Segundo a filósofa americana e teórica de gênero, Judith Butler, há uma falta significativa de estudos sobre transgêneros. A maior parte é escrita por médicos. Tendo isto em mente, pode-se dizer que ainda há um longo caminho a percorrer até que pessoas transsexuais alcancem uma representatividade sólida. Felizmente, a sociedade tem dado alguns passos para oferecer às pessoas trans uma aceitação mais humanizada. Com a arte, isso pode ser mais acessível e, graças ao diretor chileno Sebastián Lelio, podemos ouvir uma dessas histórias contada por uma mulher trans. "Una Mujer Fantástica" ou "Uma mulher fantástica" traz uma narrativa vívida e sensível que lucidamente permite ao espectador entender melhor a realidade de quem ainda figura o campo de questões psiquiátricas, de acordo com Código Internacional de Doenças – CID 10.

Marina Vidal e seu amado parceiro, Orlando, interpretado por Francisco Reyes em 'Una Mujer Fantástica'



Em Santiago, no Chile, Marina Vidal, uma garçonete durante o dia e cantora estilo lounge à noite, comemora seu aniversário. Quando seu namorado muito mais velho, Orlando, a visita em seu local de trabalho naquela noite, temos uma sensação crescente de presságio. Eles vão para um jantar romântico, em que ele planejava dar a ela uma passagem para as Cataratas do Iguaçu. No entanto, Orlando,proprietário de uma empresa de tecelagem, afirma que não sabe onde a deixou. O encontro romântico do casal continua em seu elegante apartamento. Mais tarde, Orlando acorda com dificuldades para respirar. Enquanto ele espera Marina preparar-se para levá-lo ao hospital, ele parece desnorteado e cai da escada. O amante de Marina sofre um aneurisma e morre pouco tempo depois no hospital. Ela terá que enfrentar uma  difícil jornada para provar que assim como todo mundo, é um ser humano com sentimentos e desejos. O filho de Orlando aparece no apartamento de seu pai na manhã seguinte e Marina é ameaçada de despejo do local. Outros membros de sua família também a tratarão com muito desdém. O que eles sentem por ela não tem nada a ver com o fato de que Orlando deixou abandonou o lar, e sim porque se envolveu com uma transsexual, algo perverso sob o olhar marginalizador da sociedade. As atitudes dos membros da família revelam uma transfobia enraizada . A história de Marina é apenas uma moldura de muitas outras que não ouvimos com frequência, porque transsexuais têm sido ostracizadas há tanto tempo que, embora muitas delas tenham alcançado seu nome social e outras posições sociais importantes, não somos bem informados no tocante a suas histórias de vida e dilemas. Marina tem que lidar com tantos estigmas sociais ao longo do filme, que é angustiante assisti-lo, mas não por ser muito dramático, é porque nós, pessoas cis, nunca seremos capazes de sentir com precisão o que as pessoas trans sentem e experienciam.

Sebastián Lelio emprega certas simbologias que representam o estado interior de Marina

Um investigador da polícia, um médico e a família de Orlando suspeitam da maneira pela qual Orlando morreu. Eles não respeitam a dor da garçonete e a família até a proíbe de comparecer ao funeral. Uma policial, chefe da Unidade de Ofensas Sexuais, suspeita que as contusões de Orlando, depois de seu acidente, sejam na verdade resultado de agressão. Nesse caso, Marina pode ser acusada ou vítima, levando em conta a epidemia de violência contra pessoas trans e o estigma de que as mulheres trans mantêm a violência masculina padrão internalizada. Ela tem que passar por um momento humilhante quando  obrigada a posar nua em uma delegacia de polícia. Através do olhar dessas instituições sociais, Marina é um corpo abjeto. De acordo com construções socioculturais, as noções de sexualidade e gênero não são apenas sugeridas biologicamente. Como afirma Judith Butler, há corpos que adquirem sentido, que se materializam como sujeitos discursivos e obtêm legitimidade, e outros que são invisíveis. Transgêneros ainda são objetos sociais invisíveis. Quando a ex-mulher de Orlando conhece Marina pela primeira vez, ela diz que quando ela olha para a mulher trans, ela enxerga uma quimera. É importante ver como Marina responde a tudo isso. A câmera continua se aproximando para permitir uma inspeção profunda de todos os detalhes de suas expressões. Nossa protagonista parece habituada a passar por esse tipo de hostilidade humana. No entanto, ela é paciente e corajosa o suficiente para lidar com tudo isso sozinha, descarregando a sua raiva em um saco de pancadas. 

Uma das cenas mais emblemáticas de 'Una Mujer Fantástica'. O que define Marina como mulher? É a sua genitália? 

Marina Vidal não desiste de seus sonhos, apesar de seu luto e do preconceito dos outros. Ela aspira a se tornar uma soprano lírica. Seu professor é uma das poucas pessoas no filme que se mostra solidário à protagonista. Há uma performance magnífica no final do filme que me lembrou a  de Marion Cotillard como Édith Piaf em La Vie en Rose (2007). Ambas cantaram sobre a dor de perder aqueles que amavam. O que é tão fantástico em Marina Vidal é que muitas trans poderão se conectar com a sua história. Em uma cena, Vidal pisa no carro do filho de Orlando depois que sua família exigiu que "o monstro", "o homem estúpido" fosse embora. Isso representa como ela tem o poder de lutar contra a demonização da sociedade sobre pessoas como ela. Podemos  estar do lado de Marina ou daqueles que representam a sociedade no filme, cabe-nos a reflexão. O que é tão fantástico sobre a atriz Daniela Vega? Una Mujer Fantástica ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar deste ano. Este prêmio é uma marca na cultura trans. Vega recentemente defendeu uma lei de identidade de gênero no Chile que legalmente permitiria que pessoas trans mudassem seus nomes em documentos oficiais. Daniela teve uma reunião com a ex-presidente de seu país, a feminista Michelle Bachelet, na qual os direitos fundamentais das pessoas trans foram discutidos. A representatividade é importante, e a voz ativa de pessoas trans é algo que esperamos ver com mais frequência. Obrigada, Daniela Vega!

O texto foi editado originalmente em inglês e pode ser encontrado em minha conta no Medium:

https://medium.com/@larissa1/una-mujer-fant%C3%A1stica-when-trans-people-speak-for-themselves-c276fd982f52

Referências:

DRY, Jude. (2018,June 3).‘A Fantastic Woman’ Historic Oscar Win Reignites Gender Identity Bill in Chile:

MODESTO, Edith. (2018,June 3).Transgenderism: a complex challenge:

SINCLAIR, Harriet.(2018, June 3) .World Health Organisation to consider dropping claim that transgender people are mentally ill:




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