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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Trainspotting, Irvine Welsh (1993)


Segurando a versão recente de Trainspotting da editora Rocco 

"Trainspotting é uma das obras mais atemporais que o século XX nos presenteou. A prosa boêmia e existencialista que faz emergir  a escória da sociedade, delineada tão perfeitamente. Por que uma obra  recheada de elementos operantes de uma determinada época ainda permanece  atual, delirante e de ampla identificação? '' [Grifo meu]   


A década de 90 foi um prato cheio para os aficionados por histórias sombrias, obscenas e por  personagens vistos como a escória da sociedade ou ainda como cantara o ex-vocalista da banda Alice in Chains, Layne Staley, na faixa Junkhead (Dirt,1992):  Mas nós somos uma raça de elite de nossa própria: os drogados, viciados e loucos. Ainda em 1992, Kurt Cobain, ícone máximo de uma geração desiludida com os rumos da nação norte-americana, divertiu-se na companhia de William Burroughs, o mais sujo e visceral entre os Beats, autor de outra geração que desapontou muito a integridade moral do bom cidadão estadunidense. Por falar em transgressão e Burroughs, temos Drugstore Cowboy em 1989. Cronenberg e sua versão orgânica e lasciva de Naked Lunch em 1991. Ferrara e sua vampira que injeta sangue nas perigosas ruas de Nova Iorque em 1995. Leonardo DiCaprio dando vida ao ilustre junkie Jim Carroll no mesmo ano. Até Ben Stiller se aventurou de forma séria numa vida alucinante em 1998. Enfim, posso referenciar diversas obras fictícias ou baseadas em fatos reais que narram vidas destrutivas por causa da heroína. Porém, o mais interessante nisso tudo é notar que elas imortalizaram a atmosfera de uma época e, não há dúvida que Trainspotting do escocês Irvine Welsh, até hoje, exerce uma influência significativa, mesmo após a predominância de outros gêneros fílmicos e literários, por conta de sua originalidade e por estar ganhando status de atemporal. 
O objetivo aqui é resenhar sobre a obra literária de 1993 que deu origem ao filme três anos depois. É claro que isso não a exime de paralelos com a adaptação nas telas. O primeiro detalhe que friso é que fica muito difícil em optar por qual é a melhor, pois, uma completa a outra e são igualmente estimulantes. Welsh não construiu seu milestone através de meras suposições. Ele foi um junkie e conviveu com  figuras que circulavam pela Escócia e outros lugares da Europa  atrás de um pico e outras aventuras indecorosas. Para aproximar sua obra a um teor verossímil, ele empregou um dos cinco dialetos escoceses utilizados pela classe mais baixa e conferiu aos personagens insights e digressões  que nos dá espaço para conhecer cada um deles. 



Eis a turminha que estranhamente amamos. Da esquerda para direita: 
Spud, Sick Boy, Renton, Begbie e Tommy 

O título do livro na sua versão em português, e em outras línguas, não possui tradução, isso porque soaria bem estranho, algo como ficar à toa conferindo trens e após o sucesso estrondoso da adaptação cinematográfica de Danny Boyle, a gíria escocesa se estabeleceu como cool.  Note no trecho em inglês abaixo, como se deu a escrita original do livro:

Ah start tae cook up another shot. As ah shakily haud the spoon over the candle, waitin for the junk tae dissolve, ah think; more short-term sea, more long-term poison. This thought though is naewhere near sufficient tae stop us fae what ah huv tae dae 

Assim como na obra Laranja Mecânica (1962) de  Anthony Burgess, o dialeto específico prejudicou a leitura inicial de muitas pessoas, mas em ambos, há a presença  de um glossário que contém os significados dos termos complicados e desse modo, à medida  que o leitor se aconchega na história, as dificuldades vão desaparecendo.  A mesma discussão se dá em relação à tradução dos nomes dos personagens. Se traduzirmos Spud, por exemplo, seria algo como batata e acredito que mantê-los em sua forma original parte da mesma explicação sobre o título, afinal referir-se ao Sick Boy como demente, romperia com a essência pop e instigante do livro. Trainspotting é dividido em vinhetas, e diferente do filme, Rent Boy (interpretado por Ewan McGregor) não  é o protagonista. Em cada vinheta alguém toma a voz e geralmente ela se dá através dos pensamentos. Essa escolha por parte do autor é fundamental para conhecermos os dramas e os anseios de cada um. O que mais me chamou atenção é que as personalidades se assemelham exatamente como as que vemos no filme. Por exemplo, Sicky Boy, revela-se insuportável no livro. Ele paga de cult e gentleman para dormir com uma mulher diferente toda noite, tratando-as como meros objetos sexuais. Rent e Sick Boy se amam e se odeiam, Rent até sente inveja de como seu amigo escapa ileso dos problemas, inclusive com a heroína. No livro, Sick apresenta um rabo de cavalo, o que não corresponde ao seu estilo moderno no longa, no entanto, Welsh conta sua história entre meados de 80 e início dos anos 90. A diferença entre as décadas naturalmente implica diferentes componentes culturais. A trilha do filme traz em sua maioria bandas atuantes durante a década de 90 como Sleeper e Blur. Já no livro, The Smiths é bastante referenciada — há até uma vinheta intitulada There Is a Light That Never Goes Out. O Spud do livro é o mesmo ingênuo e indiferente a convenções morais, é só lembrar do episódio em que ele e Rent vão a uma entrevista de emprego dopados por anfetamina, descrita como el magnifico por Spud. Enquanto Rent faz um belo monólogo filosófico sobre Kierkegaard, o outro freak  demonstra nenhum tipo de pudor em sua fala.


O violento Begbie se configura como peça central da trama. Os caras o temem e fingem suportar sua companhia.
Ele é o mais machista, sociopata e chauvinista  entre os personagens. 



A história da turma de viciados de Leith gira em torno de seus dilemas pessoais, principalmente em busca de algum sentido para a vida. Escolha uma casa, uma TV, um emprego, ou escolha o imaterial,  sensação esta descrita por Rent como mil vezes melhor do que um orgasmo. Tommy, que ao lado de Begbie era o único que não se injetava, ao se sentir inútil depois que sua namorada Lizzy o largou, toma seu primeiro pico dado por Rent. Isso se torna um grande remorso para todos porque logo ele se isola em seu insólito apê e morre por complicações advindas da AIDS. Falando em AIDS, o tema é abordado praticamente em todas as vinhetas devido à imensidão do tabu que se criou naquela época. Há um episódio em especial que foi omitido do filme, mas foi um dos mais marcantes para mim no livro. Bad Blood, ou sangue ruim em português, fala sobre Davie Mitchell, um dos caras que havia saído com uma das garotas viciadas e infectadas da cidade. Ao descobrir que contraiu o vírus HIV, ele persegue o cara que o passou para a então garota. Davie participa de um grupo de apoio e constata que o tal cara, Alan Venters, está mais próximo da morte do que os outros. Mitchell então planeja a sua vingança contra Alan justificando que seu crime proporcionaria algum sentido à sua vida. Outra personagem deixada de fora foi uma das ex-companheiras de Mark Rent, Kelly. Ela trabalha como garçonete e lida constantemente com clientes burgueses e machistas. Sua reação ao assédio tanto no trabalho quanto quando lida com pedreiros nas ruas implica uma personagem feminista. Mark e sua amiga Alison se impressionam como ela se defende. No longa, Boyle nos apresenta  Pauline Lynch e Shirley Henderson star como 'Lizzy' e 'Gail', que não possuem representação ao contrário da voz ativa de Kelly no episódio ''Comendo Fora''. É um dos melhores da obra de Welsh. Apesar dos rapazes se dirigirem às mulheres de forma machista, e isso é um reflexo de uma sociedade que preza a virilidade, o sentimento nacionalista e patriarcal, Rent Boy e Spud por vezes demonstram uma visão progressiva em relação às minorias. 

O que mais gostei na versão literária é que os pormenores conferem uma grandeza maior ao que é mostrado em 95 minutos de filme. É claro que as inferências culturais na tela o romantiza e oferecem uma leveza  em comparação ao estilo adotado pelo escritor — é só comparar como a cena em que Rent deixa de ser careta no filme ao som de Perfect Day e como ela é descrita no livro. Enfim, há outros detalhes que são relevantes e poderiam ser discutidos, mas o que mais me instiga é entender  porque uma obra de mais de 20 anos continua tão atual como mencionei no início deste post. O vício em heroína serviu como simbologia para a falta de expectativa de futuro assim como para a banalidade da existência. Ainda somos tomados por sentimentos de invalidez diante de frustrações advindas de diferentes instâncias da sociedade. Trainspotting traz um frame de uma geração não distante da nossa  e termino este post com o trecho final do livro, que sintetiza bem a oscilação de quem somos, para onde vamos e aonde está a nossa tão almejada liberdade.  



Agora não poderia mais voltar para Leith, para Edimburgo, nem mesmo para a Escócia, nunca mais. Lá, ele não podia ser nada além de quem era. Agora, livre de tudo aquilo para sempre, podia ser quem queria. Venceria ou fracassaria sozinho. Essa ideia o enchia de medo e excitação enquanto imaginava a vida em Amsterdã. (WELSH, 283)


   Mais de 20 anos após o sucesso de Trainspotting, a turma se reúne para a sequência do filme , T2 Trainspotting, baseada no primeiro livro e em Porno, ambos de Welsh.  










Comentários

  1. Massa. Já leu "Pornô", a continuação? Achei ótimo, bem melhor que o filme, T2 - do qual não gostei.

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    1. Olá, ainda não vi, tenho ele aqui vou dar uma sacada assim que puder =)

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