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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Billie Holiday, A Canção de quem dançou a vida inteira no escuro

A atriz  sergipana Tânia Maria incorpora a imutabilidade da dor de Billie Holiday em diferentes palcos pelo Brasil

Meu primeiro contato com Billie Holiday não foi por meio de sua imponente voz, mas assim por meio de uma visão masculina. Jack Kerouac, autor de grandiosas obras da Geração Beat, transpôs o jazz, tornando-o um catalisador de diferentes anseios e dores que permeavam as transgressoras almas de seu tempo. Billie Holiday foi lida, em suas obras, como  a perfeita encarnação da mulher abatida e entregue à melancolia. Tristessa, que ironicamente se chamava Esperanza, era a mexicana viciada em morfina e que afirmava constantemente que estava enferma. Kerouac apaixonou-se pelos detalhes vivos e sombrios que ao final do dia se sintetizavam em um pico. Tristessa se tornou um dos retratos mais delicados delineados pelo autor. Seus olhos misteriosos de Billie Holiday não escondiam que a vida era dor. Muito mais do que um olhar, as duas mulheres tinham em comum a transgressão de como a mulher lida com seus dilemas. Ambas foram prostituídas e falharam em papéis normativos de gênero. Podemos cruzar com várias Tristessas e Billies por aí, elas foram por muitas vezes, retratadas sem a profundidade subjetiva feminina a qual nós mulheres, buscamos identificação. Ao assistir à peça,  Billie Holiday, A Canção, aqui em Aracaju, tive acesso a este insight. A mulher que Billie Holiday representa é universal e atemporal.  Somos expostos a um confronto social em que a enferma e amarga Lady Day  luta com uma força visceral contra os males que deixaram ela, e deixam ainda, tantas mulheres enfermas. 

(…) a visão de Tristessa em minha cama, em meus braços, a estranheza de seu rosto amoroso, asteca, garota índia com olhos de Billie Holliday misteriosos e semicerrados e com uma grande voz melancólica como as atrizes vienenses de rostos tristes como Luise Rainer que fizeram toda a Ucrânia chorar em 1910. "

A peça se inicia com a voz de um radialista anunciando quem era Billie Holiday. A atriz que interpreta Billie de forma exemplar, caminha no escuro, simbolizando, assim, a falta de clareza que temos sobre a versão da mulher sobre a sua própria história. Somos deslumbrados pela Billie que performa em seguida. Sua elegância e voz nos desconcertam, no entanto, o glamour cede espaço a um ambiente sórdido e real na vida de muitas mulheres que foram privadas de sua liberdade por conta de estigmas sociais. A sergipana Tânia Maria intercala os passos de Billie entre um quarto de hospital e o palco. Algemas penduradas na cama se contrastam com a droga heroína sob a mesma. A vida de Holiday, assim como a de Tristessa, era dor. A heroína, como também a bebida, eram o perigoso escape a tudo aquilo que a assombrava. Apesar disso, era nos palcos que ela verdadeiramente expurgava seus demônios. A Billie que conhecemos através da  peça tem muito a nos falar. Seu monólogo é um grito em forma de protesto a todas as vezes que foi silenciada por ter sido pobre, negra, prostituída, viciada e artista! O machismo e racismo na vida de Billie traduzem a sua história de forma universal. Mulheres de outrora e do nosso tempo dialogam com o preconceito e luta que Billie expressa em músicas como Strange Fruit.  

Billie Holiday durante uma gravação na Columbia Records, Nova Iorque, 1957


O tom amargo da atriz intensifica aquilo que se deseja dizer além das palavras. Em certo momento, ela abre uma maleta com fotografias de amantes e próprias da época dos holofotes. Ela as joga pelo ar de forma brusca – assim como cada gesto seu comunica o peso de uma dor passada– e lembranças são tudo que resta para a mulher que canta o blues. Onde Billie pudesse enxergar felicidade, a música teria de estar lá. E o objetivo da peça, ao meu ver, era de oferecer uma narrativa alternativa à qual enclausurou a artista na dor que a sociedade cruel lhe impôs. Por conta disso, a performance teatral se encerra com uma cancão dedicada à ela mesma, atendendo ao seu maior desejo uma vez que tudo que Billie Holiday sempre quis foi ser apreciada naquilo em que chamava de sua vida, a música. 
Os últimos momentos do ícone do jazz foram pensados e elaborados de forma que correspondessem a um resgate necessário: a voz da mulher negra enquanto marginalizada. A oportunidade de conhecer o íntimo de Billie Holiday através de outra mulher é importante na questão da representatividade, da mesma forma que precisamos atentar que a sociedade atual põe em risco a existência e resistência de muitas Billies.  


Comentários

  1. Belo texto, parabéns. Me faz sentir germinar em mim um sentimento que andava meio esquecido, a vontade de não apenas ir lá e conferir o espetáculo, mas também relatá-lo para quem por acaso se interessar em ler, por poucos que sejam ...

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    1. Precisamos resgatar posts assim para que a cultura seja mais fomentada em nossa sociedade sob alto risco de censura.

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  2. Lisonjeada, e profundamente emocionada com a bela crítica ao espetáculo! Incrível como a percepção sobre ele está afinada com a proposta do trabalho. Claríssimo sinal de o quão atenta a todos os detalhes esteve a querida escritora ao assistir esta obra tão importante do Hunald de Alencar, nosso majestoso poeta e visionário! Muito obrigada, "The Bell Jar's Girl", por sua inspiradora sensibilidade! Somente lamento não ter tido acesso a sua escrita a mais tempo... Mas nunca é tarde para aplaudi-la. Evoé!

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    1. Oi Tânia, agradeço demais a leitura :). Espero que seu trabalho tenha tocado outros espectadores, foi sensacional !

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