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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Resenha: Girl in a Band, Kim Gordon (2015)



"What is it like to be a girl in a band?
I don't quite understand
That's so quaint to hear
I feel so faint my dear"
Como é ser uma garota em uma banda?
Eu não entendo muito bem
Isso é tão estranho de se ouvir
Eu me sinto tão exausta, meu querido"
Letra de Sacred Trickster do Sonic Youth, presente no álbum The Eternal (2009)

Kim Althea Gordon, mais conhecida como Kim Gordon, tem sido uma das mulheres mais influentes na música e nas artes visuais. Ela foi por mais de três décadas, a baixista da banda noise punk, Sonic Youth. Por ter sido a única mulher* em um grupo renomado por sua experimentação e inovação musical, ela atraiu muita atenção dos fãs e da mídia, mas sua aura branda e misteriosa jamais tinha revelado quem era a mulher por trás dos palcos. Por essa razão e outras, Kim lançou a sua  amarga autobiografia. Amarga não só porque ela estava exausta de ser vista apenas como a  garota foda da banda mais cool que você pode ouvir, mas também porque essa identidade fazia parte de algo muito maior: ser uma artista mulher lhe possibilitou refletir e buscar além do que é reservado para as mulheres. Ao iniciar a leitura de Garota na Banda, título em português, percebe-se que Gordon transforma suas palavras em facas afiadas. Falar sobre a condição da mulher em um casamento parece algo penoso para muitas de nós, já que internalizamos esse tipo de instituição como sinônimo de felicidade e plenitude feminina. No entanto, ela rompe com a imagem mítica que se construiu ao longo dos anos de seu casamento com o guitarrista, vocalista e ao lado dela, co-fundador do Sonic Youth, Thurston Moore.  Seu tom agressivo é de uma mágoa não resolvida, e sua mágoa não cessa nem no fim do livro porque ela se estende a uma problemática muito maior em que a infidelidade masculina é só uma pequena parte disso. Muitos criticaram negativamente a biografia por causa da sua insistência em falar sobre a traição de Thurston. Embora isso se faça presente, precisamos nos sensibilizar com a sua dor. Sua libertação não veio nem com o casamento e nem com a separação. Kim Gordon deixa bem claro desde os primeiros capítulos que cresceu em ambientes vívidos, deslocando-se para diversos lugares que possibilitaram sua autonomia e crescimento artístico. Há também a sua convivência com um irmão problemático, que a fazia se sentir pequena e a silenciava. Sendo assim, seu contato com as artes foi a sua verdadeira libertação. A sua voz tensa e ao mesmo tempo terna, revela uma mulher sensível ao mundo ao seu redor, assim como essa mesma sensibilidade a despertou para o que era certo e errado, e ela pode, como poucas mulheres, gritar o que estava errado e ser ouvida pois  foi uma garota da banda.


Kim Gordon e Thurston Moore tocando com Sonic Youth no CBGB em Nova Iorque, em 1983

Kim e Thurston de costas um para o outro no último show do Sonic Youth, no extinto festival SWU, em São Paulo. Kim descreve a despedida da banda como se ninguém pudesse ver o quanto vulnerável ela estava aquele dia. 

A multiartista se encontrou em meio aos outsiders de Nova Iorque. Cada escritor que decide narrar a cidade, tem um lugar  em que finca os pés e o chama de seu. No caso de Kim, ela trazia consigo pedaços de diferentes lugares e levou um tempo para encontrar a sua Nova Iorque. Sonic Youth pode ter tocado por todo o mundo, mas eles têm uma história marcante na cidade que nunca dorme e ao delinear os primeiros passos da banda, Kim faz de tal forma que acabamos entendendo porque a banda durou tanto tempo e foi tão sólida em diversos aspectos. Há uma nuance da autora que é importante ressaltar: sua observação crítica de outras bandas a fez modelar a sua própria voz e próprio estilo como artista. É por isso que ela menciona algumas vezes sua admiração pelo movimento riot grrrl e em especial, por Kathleen Hanna, ex-vocalista do Bikini Kill, uma vez que as riot grrrls se recusavam a ceder para o mainstream. A tranquilidade dos outros membros do Sonic só era rompida quando Lee e Kim discordavam, ou quando Thurston estava de mau-humor, mas a criatividade sempre se fez estável. Kim também discorre sobre o árduo início do grupo. Os problemas com a captação de som, com a troca de bateristas  e do compartilhamento de vans com outras bandas problemáticas, como Swans, não os desestimularam, pelo contrário, parecia que quanto mais as coisas iam  dar errado, elas resultariam nos maiores êxitos do Sonic. Mergulhar nesse vasto mundo underground através de uma perspectiva feminina é o ponto alto do livro. Antes do Sonic Youth, Kim arriscou em grupos femininos avant-garde e se jogou em trabalhos de intervenção artística e como escritora para revistas. Sua luta por pequenos espaços é de vital inspiração para meninas jovens que vão adentrar a vida adulta e se sentem perdidas. Quando Kim narra como conquistou seu lugar na sociedade, ela não o faz de forma arrogante, sua mensagem é a de que a gente nunca sabe quem realmente é aos 20, e nem aos 30, mas se arriscar e acreditar em si mesma e naquilo que faz fala muito mais pela gente do que qualquer definição que nos rotule. 


Kim Gordon por Felipe Orrego nos anos 70

EP de estreia do Sonic Youth lançado em 1981. Kim alega que a banda não tinha muitos recursos para a gravação e que tudo durou mais ou menos dois dias. Detalhe que Steve Shelley ainda não era o baterista da banda.


Como muitos fãs assíduos do Sonic Youth, estávamos ansiosos para chegar aos capítulos em que Kim discorre sobre o Goo e Dirty, álbuns certamente impecáveis e que marcam o auge da banda. Era início dos anos 90 e as sementes do grunge e do riot grrrl  estavam prontas para germinarem como a voz da geração. Nirvana fez uma tour com Sonic Youth pela Europa registrada  no documentário que mudou a minha vida, 1991: The Year Punk Broke. Outras bandas que despontariam depois ao lado do Nirvana, como Babes in Toyland aparecem na obra, porém, as figuras que mais chamam atenção são Kurt Cobain e sua futura esposa Courtney Love. Na época do documentário, Courtney tinha um caso secreto com Billy Corgan do Smashing Pumpkins. Kim Gordon é aquele tipo de pessoa que internaliza muita coisa pra si mesma, e mesmo quando ela resolve extravasar, há uma sensação de que ainda há muito guardado, e que nunca seremos verdadeiramente íntimos da sua história. Ela apresenta os motivos os quais não gosta de Billy e Courtney. Para ela, Smashing nunca foi punk rock e Courtney era o desastre da vida de Kurt. Suas opiniões ácidas sobre os ídolos que admiro não me incomodaram tanto, afinal de contas, nós também criticamos os artistas que não curtimos. Mas há algo vago, que não fica esclarecido quando ela resolve soltar o verbo. Kim escreve sua biografia como uma terapia, mas não como um diário. Sem dúvida, uma das  partes mais emocionantes do livro é quando ela fala sobre Kurt. Eles tinham uma relação fraternal, quase maternal e ela sempre percebeu seu desejo de aniquilação projetado nos palcos. No filme biográfico Last Days (2005) do excelente cineasta Gus Van Sant,  Kim aparece como uma executiva de uma gravadora e é a única personagem a interagir com o personagem inspirado em Kurt Cobain nos últimos dias de vida. A escolha tem seus motivos: Kim era inicialmente um grande ícone para Kurt e apesar dos dois serem estrelas do rock, uma rara e honesta amizade foi formada. "Kurt ainda me acompanha, dentro e fora de mim também, com sua música (p.225)". Os primeiros quatro anos da década de 90 foram agitados para a vida de Kim dentro e fora dos palcos, e os paralelos que ela traça, reforçam que ela foi muito mais do que uma garota na banda. Quando ela narra a corrida vida de mãe e rock star — Thurston foi descrito como um pai presente—  percebemos o quanto era difícil pois Kim tinha os projetos de arte, muitas pessoas para hospedar em casa e ainda tinha que educar Coco. 


Kurt e Kim em 1992 em Seattle após um show do Sonic Youth . Kim lembra dessa imagem perfeitamente. Kurt a havia pedido conselhos sobre Frances e Courtney. "Courtney acha que Frances gosta mais de mim do que dela (p.192)" disse ele.

Kim segurando Coco no aniversário de Frances Cobain. Foto: pinterest 

Ao relatar a primeira década dos anos 2000, derradeira da banda, Kim sente as coisas desmoronarem assim como o fatídico 11 de setembro de 2001. A família Moore Gordon tinha que se mudar para a Nova Inglaterra e Kim desconfiava que a decisão não agradava Thurston. Coco estava crescida e seguindo alguns passos dos pais  e Thurston cada vez mais distante como marido.  Sonic fez pontas nos seriados Gossip Girl e Gilmore Girls, mas o casal cool  agora frequentava terapia. Steve e Lee passavam mais tempo em Nova Iorque, no estúdio, enquanto Thurston se dedicava à sua pequena editora, Ecstatic Peace Library ao lado de sua então amante, que Kim preferiu não revelar, mas o nome dela é Eva Prinz e eles estão juntos até hoje. O grande último ato do Sonic Youth se deu em São Paulo, no SWU de 2011. Assisti ao show na época  e o revi ao ler a biografia. Nada mais doloroso do que notar que Kim estava disfarçando o mundo que desmoronou encima dela. Ela que canta a maior parte das músicas e olha sequer uma vez para Thurston. Gordon seguiu a sua vida com seus projetos em galerias de arte e o Body/Head,  grupo que criou ao lado do músico e amigo do Sonic Youth, Bill. Havia também a colaboração do diretor Richard Kern já que seus filmes eram exibidos ao fundo da performance musical. Um novo amor e uma nova chance também completam o desfecho do livro. O que Kim Gordon leva da experiência do Sonic Youth consigo é a libertação visceral de tocar e a percepção de que a vida nos palcos não se distancia muito da vida real, pois como ela mesmo pontuou na sua performance de Aneurysm do Nirvana, quando eles foram induzidos ao Rock and Roll Hall of Fame em 2014, uma explosão de dor tomou conta de si e os palcos foram os verdadeiros diários íntimos de Kim Gordon que ela sempre guardará para si mesma.

  


Body/Head, Kim Gordon, festival Supersonic  2012



Foto: Atiba Jefferson (2014)


Kim Gordon ao lado dos membros remanescentes do Nirvana no Rock and Roll Hall of Fame (2014)



Eu e minha cópia do livro. Fã realizada!


Algumas referências citadas por Kim Gordon ao longo do livro:

Videoclipe de Death Valley '69 do álbum Bad Moon Rising. Kim fala que a música é  sobre como Charles Manson assassinou os anos 60 e toda sua ideologia pacífica e hippie. Como ela mesma grifa no livro: " [...] eu preferia cantar sobre as trevas que cintilavam debaixo da colcha brilhante da cultura pop americana."




Ciccone Youth- projeto paralelo do Sonic de 1986.  Dentre as faixas do "Whitey Album" havia um cover da música Into the groove da Madonna, além dela estar presente na capa, e na biografia Kim Gordon analisa a revolução sexual da artista pop como despretensiosa e que seria transformada em uma ideia masculina de marketing.  Kim aproveita para alfinetar logo em seguida, a artista pop atual Lana Del Rey, que na mesma discussão sobre a imagem do gênero musical sobre feminismo, aponta Lana como ignorante em relação ao movimento uma vez que o que ela prega é a autodestruição da mulher.




1991: The Year Punk Broke- o início da irmandade entre Kim e Kurt Cobain. A sintonia entre Kim e Kurt foi muito mais forte do que entre ele e Thurston. Kim relembra o falecido músico e amigo como uma companhia divertida e de como estavam o tempo todo juntos. Para ela, a união entre Kurt e Courtney Love simbolizava a aniquilação que ele buscava.




X-Girl - a linha de roupa que transitou de cult para popular no Japão. Em 1993, a vida de Kim Gordon era certamente agitada: Sua linha roupas marcava desfiles ao lado de figuras imponentes como Sofia Coppola e Spike Jonze, que eram casados na época, e  Beastie Boys. Além disso, ela fundou ao lado da sua grande amiga e guitarrista do Pussy Galore, Julia Cafritz, o projeto musical, Free Kitten. E como se não bastasse, engravida de sua primeira e única filha, Coco.



Último show do Sonic Youth no SWU de 2011- "Meu futuro ex-marido e eu enfrentamos aquela massa de brasileiros molhados pulando, nossas vozes juntas corrigindo as palavras antigas (da música Death Valley), e para mim foi uma trilha sonora em staccato de energia crua e surreal, de raiva e dor: Hit it. Hit it. Hit it. Bater.Bater.Bater  Acho que nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida. (p.13)"




Kim cantando Aneurysm do Nirvana no Rock and Roll Hall of Fame em 2014."Kurt foi o artista mais intenso que eu já tinha visto. Durante o show, eu só pensava em como queria passar o mesmo tipo de audácia para o público. Eu cantei "Aneurysm", com seu refrão, "Beat me out of me"("Me bata até que eu saia de mim:) trazendo toda a minha própria raiva e mágoa dos últimos anos-- uma explosão de dor de 4 minutos, onde eu pude finalmente me permitir sentir a tristeza furiosa pela morte de Kurt e tudo que a cercou. (p.284)"




 Quer mais referências? faz o download do livro aqui e  depois volta para deixar suas observações sobre a leitura.




*exceto por Anne DeMarinis, que assumiu os teclados e backing vocals  por pouquíssimo tempo na banda, saindo antes do homônimo álbum de estreia.

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