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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Varda par Agnès (2019): uma homenagem à cineasta





Em março deste ano eu tinha planejado enviar uma carta à diretora belga, Agnès Varda. Escreveria sobre sua importância na minha vida tanto no plano pessoal quanto profissional uma vez que seus filmes não serviram puramente para críticas que escrevi, mas me transformaram enquanto mulher. A ideia partiu de um amigo que já escreveu para diversos artistas e obteve retorno. Pensei primeiramente em Varda porque há anos sou apaixonada pelo seu olhar feminino, e portanto, humanizado às personagens que cria. Assim, me sentiria confortável em escrever uma carta como se fosse destinada a uma amiga que morava longe de mim, pois era desta forma que a cineasta nos fazia sentir. Imagine deitar sua cabeça no colo de alguém que possui uma mão calorosa e, à medida que se tranquiliza, você é transportad(x) como em um sonho, para paisagens serenas e prosaicas pelas quais caminham animais, crianças e um casal inquieto de olhar pesado. Mais adiante, padeiros, vendedores e artistas de rua, dedicam-se a seus ofícios, enquanto uma bela mulher loira , porém de olhar lúgubre, caminha à sua direção e a cada passo, ela parece se aproximar do abismo. Ela poderia ser Marilyn Monroe, que chegou ao abismo naquele mesmo ano. Você levanta subitamente, assustad(x), e a mão calorosa te acalma novamente,pois, este foi só o começo. Esta divagação é referência aos dois primeiros longas de Agnès Varda: La Pointe Courte (1955) e Cléo das 5 às 7 (1962).
 Os filmes iniciais da diretora não só apresentariam qual seria o seu estilo de cinema, mas foram primordiais para a sensibilização do que viria a ser a Nouvelle Vague francesa. O movimento revolucionário de fazer cinema, que se destacaria pela ruptura com o modo clássico de montagem cinematográfica, ganhou contornos pelo olhar de muitos cineastas, maioria masculina, mas Agnès é pioneira. Suas obras são um sopro de vitalidade para as almas mais enrijecidas e abarrotadas pelo cotidiano, como ela disse uma vez "O acaso é meu melhor roteirista.". Se pude ser descritiva ao divagar sobre personagens de seus primeiros filmes é graças ao toque documental e, ao olhar feminino, que é revolucionário por si só. A belga criada na França deixou esse mundo após 64 anos de carreira, em março deste ano, uma semana após a minha decisão de lhe enviar uma carta. Apesar disso, ela nos deixou como presente, um derradeiro filme autobiográfico, Varda por Agnès, em que evoca diversas partes de sua vida como cineasta. Sua viagem ao passado é um deleite, e entre altos e baixos, acompanhamos a simples e sagaz trajetória de alguém que nunca disse adeus.

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Agnès Varda  Foto: Robert R. McElroy/Getty Images
Na década de 50, uma jovem Agnès, que trabalhava como fotógrafa oficial no Teatro Popular Nacional em Paris, desejava mudar de ofício. Na verdade, ela nunca abandonou a fotografia. Ela a seguiria como companheira fiel e revigorante por toda a sua carreira. O que inquietava Varda era o desejo de filmar aquilo que queria ver. Ao contrário de seus colegas cinéfilos e ansiosos por uma nova era do cinema francês, como Jean-Luc Godard e François Truffaut, ela raramente frequentava o cinema e a inspiração para o seu primeiro longa partiu de fotografias de um lugar humilde, Sète, onde a sua mãe nasceu, habitado por pescadores e suas famílias  que enfrentavam adversidades sociais em meio a uma paisagem tenra que ela mesma amava. La Pointe Courte foi seu primeiro filme, e mesmo sem formação cinematográfica, Varda buscou na literatura a estrutura necessária para desenvolver o enredo. Em Varda por Agnès ela cita o romance Palmeiras Selvagens, de William Faulkner, como aquele que a inspirou para oscilar entre duas narrativas e interligá-las.Sentada no palco de um grande teatro, ela relata lucidamente, nos seus 90 anos, os filmes que formaram quem ela é.


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Agnès filma o casal sem nome e em crise, que tenta reconstruir seu casamento em La Pointe Courte (1955). Foto: Oscars.org
 
Por meio de filmagens e fotografias, Agnès continua a analisar seus filmes, dessa vez, aquele que seria o seu mais reconhecido, Cléo de 5 às 7. Neste, a personagem principal, uma cantora pop, vai de encontro à objetificação feminina ao ter a própria visão sob o seu corpo em conflito consigo mesma e com os valores que adota. A protagonista de Cléo interpretada por Corinne Marchand, aguarda angustiadamente o resultado de um exame que pode confirmar o diagnóstico de câncer. Agnès conta no seu documentário, como o emprego do visual auxilia na construção de sentidos. Ela empregou recursos como o preto e branco em contraste com o colorido utilizado quando a personagem, supersticiosa, vai a uma cartomante a fim de obter uma luz sobre o seu  futuro. Ao contrário do que ocorreu à Macabéa, personagem-protagonista da obra A Hora da Estrela de Clarice Lispector, que logo após saber de seu brilhante futuro, tem o seu único momento de estrela na vida, a incerteza que Cléo tem sobre o seu a transporta para os pensamentos mais obscuros. Em Cléo de 5 às 7, há também quadros que remetem à efemeridade da beleza e a proximidade da morte a fim de romper com a busca eterna pelo ideal de feminilidade. O tempo demarcado também cria uma sensação claustrofóbica, pois, à medida que passa, mais a personagem se sente próxima do seu maior medo, a morte. Outro aspecto elaborado por Varda é a utilização de espelhos. Há vários deles na casa da personagem e em uma cena ela se depara com um  rachado. A simbologia por trás disso não apenas se volta à questão da superstição e ideia de morte, mas também ao espelho como o mito que reflete a imagem ideal que buscamos de nós mesmas. O valor da beleza tão buscado incessantemente por mulheres  se rompe nas rachaduras e nelas fragmentam-se as diversas Cléos que coexistem, mas que precisavam de um acordar. É nessa mesma década que a segunda onda do movimento feminista ganharia força a partir da ruptura de padrões. Agnès Varda se declarou feminista por diversas vezes, e seus filmes são assim, diálogos contemporâneos com as transformações sociais.


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Corinne Marchand à esquerda e Agnès Varda no set de Cléo das 5 às 7 (1962) Foto: Tumblr





Três anos após o lançamento de Cléo, a cineasta se aventura mais uma vez na crítica a valores patriarcais ao filmar Le Bonheur (As Duas Faces da Felicidade, em português). Nele, a cineasta arquiteta o perfeito conto de fadas masculino, em que o homem tem a liberdade da traição sem que haja qualquer culpa. O ambiente criado em torno do filme denota uma família tradicional feliz: mãe, pai e filhos se divertem em um campo. Agnès abusa do jogos das cores vivas e alegres em sintonia com o estado de espírito do personagem masculino, apesar das consequências trágicas decorrentes de suas atitudes. A morte é mais uma vez empregada por Varda para simbolizar a ruptura com a ideia de que a mulher deve aceitar as atitudes de seus maridos sem se opor. Mesmo assim, o personagem segue a sua vida acreditando que ainda é feliz pois, a sua amante poderia rapidamente ocupar o lugar da sua esposa. O grande ponto do filme é o contraste existente entre a liberdade sexual feminina e masculina. Por este filme, Agnès Varda ganhou o Urso de Prata  na categoria " Grande Prêmio do Júri" no Festival de Berlim. É importante ressaltar que a disparidade de gênero quando falamos sobre a representatividade no cinema é alarmante. Na verdade, o mundo da sétima arte não é o único a refletir a desigualdade de gênero, mas neste caso, o número de diretoras que chegam lá ainda é muito pequeno. Na premiação do Oscar, apenas uma cineasta levou a estatueta em todos esses quase 100 anos de existência. Já neste ano, o Festival de Berlim, demonstrou um pequeno grande passo na mudança desse quadro contando com mais de 40% dos filmes indicados dirigidos por mulheres. No caso de Cannes, foram apenas três. Já o Oscar... zero! Já passou da hora de valorizarmos mais o cinema pela perspectiva feminina. Embora Agnès Varda tenha sido por muito tempo considerada a "mãe da Nouvelle Vague" , ela só foi premiada pela primeira vez ao Oscar nos seus 89 anos.

Agnès Varda aos 37 anos segurando seu Urso de Prata no Festival de Berlim pelo filme Le Bonheur (1965). Foto: Reprodução
A cineasta ainda contaria com um time feminino de peso na produção de Uma Canta, a Outra Não de 1977. Além disso, o filme é uma obra completamente feminista, do início ao fim, em tempo e espaço, Varda sentiu a urgência do movimento anos antes, e soube em menos de 10 minutos, dar voz a mulheres sobre seu corpo e seu gênero no curta Resposta das Mulheres (1975). Na década de 60, a grande discussão da segunda onda feminista era sobre a libertação sexual da mulher. Em 1969, o "année érotique" pelas vozes de Jane Birkin e Serge Gainsbourg, Agnès trouxe à sua tela, uma das musas de Andy Warhol, Viva, e o seu corpo nu filmado sob uma perspectiva feminina no filme Lions, Love. Mas é em Uma Canta, a Outra Não que Agnès abrange as discussões feministas em relação à amizade entre mulheres, ao aborto, ao amadurecimento feminino, à consciência de classe e ao protesto pelos diretos das mulheres. Tamanha complexidade foi condensada em uma linda narrativa sobre duas mulheres que desde jovens, enfrentam obstáculos da sociedade patriarcal, e o emprego do musical suaviza o tom dramático do filme, assim como dialoga com as frases-protetsto voltadas às causas das mulheres. "Meu corpo é meu" seria anos mais tarde, o lema punk de várias bandas riot grrrls. O ativismo das francesas não foi a única forma de engajamento da diretora, enquanto estava nos Estados Unidos acompanhando seu marido e também cineasta, Jacques Demy, Agnès capturou em 1968, a luta dos Panteras Negras e permitiu que os próprios membros falassem à respeito da prisão de um deles e quais eram as suas queixas e reivindicações , além de contar com a presença de Kathleen Cleaver e  a sua relevante constatação sobre a aceitação do cabelo das mulheres negras e sobre a participação das mulheres na militância.



Agnès Varda sur le tournage de «L’une chante, l’autre pas», en 1976.
Agnès Varda;  Nurith Aviv (câmera) e a assistente de Aviv Elisabeth Prouvost, durante as filmagens de Uma Canta, a Outra Não (1977). Foto: Reprodução
    

O foco no protagonismo feminino não cessaria durante a sua filmografia da década de 80. A liberdade das amarras sociais como  o envelhecimento feminino e a concepção da mãe solteira foi observada nos filmes Jane B. por Agnès V. (1988) e Documentário (1981) respectivamente. Quem diria que veríamos um dos maiores ícones de beleza padrão-europeu, Janes Birkin, discorrer sobre o ato de envelhecer. Sob à direção de Agnès Varda, as nuances da vida se tornam mais sutis, mas ela também nos avisou que a busca pela liberdade feminina pode ser bem dolorosa e por vezes, fatal. Em Sem Teto, Nem Lei (1985), a protagonista experimenta de forma amarga, que a busca pela total independência das pessoas é um caminho ainda longe a ser alcançado pelas mulheres. Mona, interpretada por Sandrine Bonnaire, uma das minhas atrizes preferidas de todos os tempos, se desvincula de sua vida moldada pelo sistema capitalista. Ela se torna uma andarilha e não vai em busca de coisas materiais ou de validação, a personagem é por si só, uma representação da liberdade. Por ser um filme que se centra na mulher e no rompimento dela com as construções sociais impostas às mulheres, a crítica considera a personagem feminista. Entretanto, o filme não é de todo feminista visto que Mona é extremamente dependente dos favores dos outros e também não tem ambições, não sabe até onde quer ir, não se afirma.Apesar disso, Vagabond é um filme importantíssimo para o público feminino, pois, traz uma personagem que foge ao tradicional. Quis dizer que ela não segue os modelos limitados já conhecidos de personagens femininas no cinema. Nesse aspecto, o filme pode ter sim uma nuance feminista. Sandrine faz uma ponta em Varda par Agnès, relatando as condições adversas  que passou durante as gravações do filme, além de revelar o lado mais exigente, que surpresa, de Varda.




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Agnès Varda e Jane Birkin durante as gravações de Jane B. por Agnès V. (1988). Foto: Reprodução



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Sandrine Bonnaire e Agnès Varda nos bastidores de Sem Teto, Nem Lei (1985). Foto: Reprodução

A sua ode ao seu eterno companheiro, o diretor Jacques Demy, foi lançada meses após a sua morte por conta de complicações da AIDS sob o título de Jacquot de Nantes, em 1991. Demy e Varda estavam juntos há mais de 30 anos e a diretora resolveu homenagear seu esposo contando sua vida em ordem cronológica. Ela dá uma atenção especial aos encontros de Jacques e sua grande paixão desde a infância, o cinema.Entre a última década do século XX e seu derradeiro documentário, Agnès dedicou-se a registrar a jornada  de pessoas que jamais ganhariam lentes tão humanizadas se não fossem pelas da cineasta. Entre elas, catadores (Os Catadores e Eu,2000); viúvas (Quelques veuves de Noirmoutier,2005); os moradores de cidades pequenas (Olhares,Lugares 2017). Foi em Os Catadores e Eu  que Agnès usou pela primeira vez uma pequena câmera digital e em Varda por Agnès, ela se deleita ao manipular a novidade tecnológica. A virada do século despertou, de fato, uma maior consciência sobre como a globalização afetaria o cinema. Varda transformou seus rolos da película As Duas Faces da Felicidade em uma linda cabana, exposta em Paris no ano passado. As latas do filme foram transformadas em um arco e outras obras da diretora foram utilizadas em exposições a fim de oferecer ao público, experiências sensoriais únicas. À título de exemplo foi a exibição dos relatos presentes no filme Quelques veuves de Noirmoutier (2005) em 14 vídeos colocados um ao lado do outro, plugados por fones de ouvido, e a sensação era a de que cada vez que os visitantes mudavam de uma cadeira à outra a fim de ouvir as viúvas, estavam na verdade ouvindo a uma só, e assim, o luto se tornava ao mesmo tempo, pessoal e coletivo. 
Em As Praias de Agnès (2008), filme irmão do Varda por Agnès, o qual ela também afirmava ser seu último filme, a cineasta celebra seus 80 anos de idade em uma aventura lúdica e repleta de emoções. Ao contrário do seu derradeiro documentário, Agnès abusa das analogias que a praia pode conferir emocionalmente. A praia também é referenciada na obra de 2019, porque a diretora viveu pelo amor à sua carreira e ousou ao homenageá-la mais de uma vez. É difícil resumir o extenso trabalho de Agnès Varda porque, diferentemente de vários diretores que passaram anos e anos aprimorando suas técnicas cinematográficas a fim de ser reconhecido por premiações mundo afora,  a sua maior ambição foi pelo despertar do lado mais humano que o cinema poderia proporcionar. Ela sempre foi enfática em seus objetivos e incansavelmente espalhou essa mensagem, mesmo quando seus filmes foram fracassos de bilheteria, como em Cento e Uma noites (1995) que apesar da longa lista  de grandes astros do cinema como Alain Delon e  Marcello Mastroianni, Agnès prioriza em Varda por Agnès, a cena divertidíssima  em que o personagem interpretado por Robert De Niro cai em um lago. Enfim, o cinema de Varda nunca precisou ser agraciado por grandes premiações para ser valorizado. Cada uma de suas obras traz algo memorável e a certeza de que elas são fortes oponentes ao pensamento unidimensional. Um "au revoir" com um gosto de "à bientôt"  à Agnès Varda. Nos vemos nas próximas descobertas de seus eternos filmes. 

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Jacques Demy e Agnès Varda durante as filmagens de Jacquot de Nantes (1991). Fonte: reprodução.


"Eu tentei ser uma feminista alegre, mas eu estava com muita raiva". Citação retirada do documentário As Praias de Agnès (2008):






Trailer do documentário Varda por Agnès abaixo:



Confiram abaixo,  críticas que já fiz a alguns filmes da Agnès Varda:





Visages,Villages (2017)


Fontes:
CONWAY, K. Agnes Varda. University of Illinois Press, 2015. (208 páginas)
DEROO, R.J. Agnes Varda between Film, Photography, and Art. University of California Press, 2017 (248 páginas)


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