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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Once Upon a Time ... in Hollywood (2019)

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Esta crítica contém spoilers de vários filmes da carreira de Quentin Tarantino*

O diretor norte-americano Quentin Tarantino lançou recentemente sua nona película, "Once Upon a Time ... in Hollywood" ,em português, " Era Uma Vez em Hollywood" quatro anos após seu último longa-metragem "Os Oito Odiados". O cineasta sempre se declarou fã de gêneros cinematográficos distintos como o spaghetti, referente ao faroeste italiano, e os considerados B de exploitation e gore. Cada obra a qual escreve o roteiro e/ou dirige serve de  homenagem ao cinema através da sua própria linguagem; a sua cinefilia foi essencial na consolidação da sua carreira logo no início. Tarantino ainda  é mestre em interligar personagens aleatórios e incumbi-los de diálogos ricos e memoráveis. Esta é a primeira vez que escrevo sobre algum filme de sua direção e por muitos anos o considerei o melhor diretor de todos os tempos. Apesar da minha grande paixão pelo cinema que  foi despertada por meio de obras entre as quais contêm a sua participação, como no roteiro de "Amor à Queima-Roupa (1993)" e na história de "Assassinos Por Natureza (1994)" , atualmente reconheço algumas problemáticas em torno de Tarantino. A principal delas é a sua omissão de décadas diante dos abusos cometidos pelo produtor de seus filmes, Harvey Weinstein. O abusador em questão, fez vítimas como  a atriz e grande musa de Quentin,Uma Thurman. No entanto, o diretor desfez laços com a produtora e se diz envergonhado por sua atitude, mostrando-se contra seu antigo financiador. Então, quando o cineasta apostou numa reparação histórica de um dos casos mais brutais de violência no mundo de Hollywood no mesmo ano em que os casos de abuso sexual foram levados à mídia, isso me levou a refletir sobre a questão do poder e como ele opera na vida das pessoas; e é por esse viés que seguirá a crítica, além de citar outras referências que como cinéfila, não posso deixar de lado.

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Da direita à esquerda: Margot Robbie, Leonardo DiCaprio e Brad Pitt protagonizam "Era Uma Vez em Hollywood" Fonte: reprodução


Era Uma Vez em Hollywood inicia sem ter seu título revelado, perfeito! Ao fim do filme, esta escolha do diretor revela a sua perspicácia. Ambientado em Los Angeles no ano de 1969, somos apresentados ao ator hollywoodiano Rick Dalton, interpretado por Leonardo DiCaprio, em uma de suas performances antigas no seriado de estilo bang-bang, "O Caçador de Recompensas". Rick é acompanhado há anos por seu dublê de cenas de ação, Cliff Booth (Brad Pitt), e em uma de suas saídas regadas a bebidas, Dalton ouve do agente Marvin Shwarz (Al Pacino) que a sua carreira está condenada ao fracasso  e o aconselha a arriscar a atuação em filmes spaghetti na Itália. A partir daí, Rick se contrasta aos seus personagens viris e chora incessantemente temendo seu ostracismo. O personagem mede seu valor com base no seu sucesso de outrora, e afoga sua frustração em bebidas e auto aversão. O seu confronto com o envelhecimento é comum na esfera hollywoodiana, especialmente entre as mulheres que muitas vezes são confinadas a papéis limitadores porque um dos clichês impostos é o da aparência jovem que transmite a versatilidade e o interesse. É válido ressaltar como o poder da fama tem efeitos distintos nos protagonistas do filme. Em paralelo aos dilemas do ator Rick Dalton, temos o casal Roman Polanski (Rafał Zawierucha) e Sharon Tate (Margot Robbie), que moram ao lado do personagem de DiCaprio e segundo ele, uma festa da piscina seria o link para a sua ascensão uma vez que Polanski estava no auge de sua carreira como diretor com o longa " O Bebê de Rosemary".

 A vizinhança não era só o que os personagens compartilhavam em comum. A construção do retrato da atriz e modelo, Sharon Tate,  foi feita delicadamente por Quentin, e apesar da discussão em torno do número de falas da personagem feminina na tela  — realmente são poucas —  há muito  que pode ser interpretado  além das palavras quando falamos da sétima arte. Sharon nunca foi levada a sério pela indústria cinematográfica, refiro-me aos grandes diretores e à mídia, sendo chamada de imbecil, vulgar e fraca por diversas vezes. Porém, pelo olhar de Tarantino, Sharon soa nas poucas linhas, intelectual e admirada pelos seus trabalhos no cinema. Em uma cena, ela vai a um cinema que exibe um dos seus filmes,  Arma Secreta contra Matt Helm (1968)  e as pessoas que trabalham por lá não a reconhecessem, mas isso não a incomoda, mostrando-se assim, orgulhosa ao ver a reação de quem assiste à sessão do filme. Destaque para a obsessão de Tarantino em filmar pés, e os sujos da Margot, denotam ainda mais a simplicidade da pessoa que foi Sharon Tate. Enquanto o narcisismo impera na carreira de Rick Dalton,  a humildade transparecia na daquela. Naquele mesmo ano, a vida da atriz teria um fim trágico, mas não era a intenção do cineasta retratá-la somente por essa nuance,  e essa tem sido a única história contada sobre Tate, a intenção era a de explorar a sua conexão com o cinema.



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Uma feliz Sharon Tate, interpretada por Margot Robbie, assiste ao seu próprio filme.


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Um inseguro e narcisista Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) tem milhares de falas e elas refletem o quanto a fama lhe subiu à cabeça 




Este talvez seja o filme mais dramático de Quentin Tarantino. A crítica negativa recai sobre a expectativa de sua estética violenta e hiper dinâmica. Mas há um detalhe que com certeza poderá agradar os fãs fiéis do diretor. Ao longo do filme, é possível notar  referências a outros da sua filmografia. Há uma cena em que os personagens caminham pelo aeroporto de L.A e a parede de pastilhas  remete à Jackie Brown,que foi gravado no mesmo local . Há também a participação de Kurt Russell e Zoë Bell como o casal Randy e Janet, que trabalham com a contratação de dublês. Em outro longa do Tarantino, À Prova de Morte, o casal era na verdade, inimigo e ambos atuavam como dublês. Na verdade, a própria Zoë  segue a carreira de dublê e foi a de Uma Thurman em Kill Bill.  Em  uma sequência de mostras de seus filmes antigos, Rick Dalton toca fogo em nazistas em uma referência ao final clássico de Bastardos Inglórios. O longa está repleto de referências nostálgicas aos outros oito filmes do diretor e acredito que a mais perceptível seja a da terceira vez que emprega o gênero western. O que começou com Django Livre e continuou com Os Oito Odiados. Era Uma Vez atinge seu clímax  quando Cliff Booth dá carona a uma hippie adolescente com destino ao Rancho Spahn, lugar que outrora serviu como cenário para filmes western, sendo então reconhecido pelo dublê. Para quem já era familiarizado com o caso Tate-LaBianca, a visita ao rancho que agora era habitado pelo guru Charles Manson e seus seguidores, poderia sentir  o filme inclinando-se para outra direção.


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Rick Dalton e sua esposa e atriz  italiana Francesca Capucci (Lorenza Izzo)

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Pam Grier como Jackie Brown (1997)

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Zoë Bell contracenando com Kurt Russell em À Prova de Morte (2007)


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Cena do filme ficcional de Rick Dalton "The 14 Fists of McCluskey"


Charles Manson e seu poder de alienação sobre as pessoas, particularmente sobre as mulheres, é um caso estudado até os dias de hoje. Nos loucos anos 60, muitas pessoas experimentavam com drogas alucinógenas e buscavam qualquer forma de libertação mental, física, política, etc. A liberdade sexual tem a sua história conduzida por movimentos de mulheres e a social e política conduzida também por outros grupos como o movimento negro e estudantil. Na mesma década, líderes políticos organizavam legiões  de seguidores que acreditavam em suas profecias e como a Guerra do Vietnã despertou a desconfiança no governo estadunidense, esses homens encontraram  a sua brecha. É evidente que alguns deles como Martin Luther King Jr., tinham razões concretas para o seu ativismo civil, mas nesse mar de ondas politizadas, haviam aqueles que embarcavam em direção às profundezas. Quentin Tarantino foi exemplar ao apresentar o personagem de Charles (Damon Herriman)  apenas uma vez, em uma situação real quando ele invade a residência de Tate e Polanski, localizada na Cielo Drive, para perguntar sobre o empresário Terry Melcher, que não estava presente e nesse meio tempo seu olhar e o de Sharon se cruzaram num caminho sem volta. O ator que interpretou Charles, Damon Herriman, afirmou em entrevistas que várias de suas cenas foram cortadas por Quentin. Entretanto, a rápida aparição do profeta lunático foi vital na compreensão da intensidade de seu poder de manipulação. Quando estava na prisão anos antes, aprendeu técnicas para controlar mulheres mentalmente e quando chegou em Hollywood, tomava vários ácidos e sob efeito acreditava ser Jesus Cristo crucificado. No filme, Cliff Booth dá carona a uma das garotas do Manson, detalhe para a cena panorâmica do cruzamento de ruas  em sinal fechado que remete à cena de encontro entre Marcellus Wallace e Butch. Ao chegar no rancho Spahn, lugar que já atuou como dublê, é recebido com desconfiança por parte das dezenas de garotas e alguns rapazes que lá moravam. A garota que acompanha Cliff se chama Pussycat e pode ser referência à caminhonete  'Pussy Wagon' de Kill Bill, também utilizada no videoclipe Telephone de Lady Gaga e Beyoncé, assim como à Ruth Ann Moorehouse,  conhecida como a mais bela entre as garotas do Charlie que seduzia homens pela cidade os levando para o rancho.


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Damon Herriman como Charles Manson em Era Uma Vez em Hollywood.
 
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Margaret Qualley como "Pussycat" e os pés ao alto encostados no para-brisa o que também pode ser visto em À Prova de Morte.

Entre as dezenas de garotas presentes no rancho durante a visita de Booth estavam  Linda “Flower Child” Kasabian (Maya Hawke), Lynette “Squeaky” Fromme (Dakota Fanning), Patricia Krenwinkel (Madisen Beaty), Susan “Sadie” Atkins (Mikey Madison) e  Catherine “Gypsy” Share (Lena Dunham). A submissão das garotas era tamanha que só falavam sobre Charles e elas estariam dispostas em fazer tudo para protegê-lo. Booth reencontraria três das garotas e o braço direito de Manson,Charles “Tex” Watson (Austin Butler), algum tempo depois quando colocariam em prática o seu grande plano de dominação mundial. O grande plano não é explicado no filme, mas consistia basicamente na exterminação dos brancos pelos negros, mensagem essa que supostamente estaria subentendida em várias faixas do álbum branco dos Beatles, ouvido  milhares de vezes por Manson. O mesmo alegou que os brancos sempre ensinavam aos negros como é que se fazia as coisas e por isso arquitetou os assassinatos que ocorreram em meados de 1969. Na revisão histórica feita por Quentin, os assassinos mandados por Manson à casa de Sharon Tate para matar todo mundo que estivesse lá, encontram-se primeiro com Rick Dalton, que em uma noite regada a bebidas por conta de seu iminente ostracismo, incomoda-se com o ronco do motor do carro de Tex e os manda cair fora. É aí que Sadie, ao reconhecer o ator bang-bang,  tem a ideia de matar aqueles que os ensinaram a matar na TV, e assim, ao lado de Tex,Patrícia e Linda (a última não participou da matança), invade a residência de Dalton. O que eles não esperavam era que quem estivesse na sala não fosse o  ator alcoolizado  e sim seu dublê, Cliff Booth, que em uma sequência cômica e gore, mata parte do grupo, enquanto Rick que ouvia música e tomava um drink na piscina, é surpreendido por Sadie e termina tocando fogo nela.

Após a chegada da polícia na Cielo Drive, o vizinho e amigo próximo de Sharon, Jay Sebring (Emile Hirsch), pergunta a Rick o que tinha acontecido e ouvimos Sharon, através do interfone,  convidá-lo para beber na companhia de Abigail Folger (Samantha Robinson)  e Wojciech Frykowski (Costa Ronin). Enquanto o ator cumprimenta os vizinhos, o letreiro com o título do filme sob na tela indicando que esse era a narrativa na versão do diretor. Na versão real,  não havia Rick nem Cliff e o grupo de Manson executou brutalmente Sharon Tate, grávida de oito meses, e seus convidados, com tiros e inúmeras facadas. O sangue de Tate foi utilizado para escrever pela casa algumas das palavras presentes nas músicas do álbum citado dos Beatles e distorcidas por Manson como profecias. Pig e Rise são algumas delas. 

Sendo assim, Quentin Tarantino entrega a sua nona película como mais uma reparação histórica a casos de extrema violência, como fez em Bastardos Inglórios, e embora Era Uma Vez não tenha agradado a todos por conta de seu teor dramático de longa duração, ou por conta da repetição de fórmulas, o longa-metragem tem o seu mérito pela dedicação do diretor em retratar como o poder opera na vida das pessoas, levando-as à manipulação extrema, à autodestruição e a refletir sobre a morte e a vida. Por que a figura de Charles Manson ainda agrega tantos fãs  mesmo 50 anos após o assassinato de Tate e após a sua própria morte? Por que a possibilidade da Sharon Tate e seus amigos terem sobrevivido e o grupo ter morrido no seu lugar desagradou tanto assim o público? 



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O esquadrão assassino de Charles Manson com fins de assassinar a grávida Sharon Tate em Era Uma Vez em Hollywood


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Da esquerda à direita: Vernita Green (Vivica A. Fox), Budd (Michael Madsen), O-Ren Ishii (Lucy Liu). e Elle Driver (Daryl Hannah) como o Esquadrão Assassino de Víboras Mortais com fins de assassinar A Noiva grávida em Kill Bill


A fim de enaltecer a carreira cinematográfica da atriz Sharon Tate, confira abaixo uma lista de seus melhores filmes:
O Olho do Diabo (1966)
O Vale das Bonecas (1967)
A Dança dos Vampiros (1967)
Arma Secreta contra Matt Helm (1968)
As Treze Cadeiras (1969)

Uma crítica que fiz ao filme "O Vale das Bonecas"  pode ser lida em Inglês aqui.

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