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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Jane Eyre (1847), Charlotte Brontë








“Espera-se das mulheres que sejam calmas. Mas elas são como os homens. Precisam exercitar suas faculdades, necessitam de um campo para expandir seus esforços, assim como seus irmãos. Sofrem com as rígidas restrições, a estagnação absoluta, tanto quanto os homens sofreriam. E é tacanho por parte desses seres mais privilegiados que elas devem se limitar a fazer pudins e a tecer meias, a tocar piano e a bordar bolsas. É insensato condená-las, ou rir delas, quando buscam fazer ou aprender coisas novas, além do que os costumes determinam que é o ideal para o seu sexo”.


(Jane Eyre, Cap XII)


Imagina o quão difícil era a vida de uma escritora no século XIX. Atualmente muitas encontram dificuldade em relação ao reconhecimento, naquela época, além disso, elas não podiam ousar na escrita. Restringiam-se a ingênuas histórias românticas, cujos fins se destinavam à realização ideal do amor. No entanto, algumas arriscaram a fuga desse lugar, utilizando-se do mesmo, a fim de romper com essa idealização, e assim, ofereciam novos rumos aos seus personagens. Um célebre exemplo disso encontra-se no primeiro romance da inglesa Charlotte Brontë. O trecho do capítulo acima é um dos vários que ressaltam a singularidade da heroína de Brontë em Jane Eyre. O termo ganha nova roupagem na medida em que a sua trajetória é marcada pela busca de emancipação e confiança absoluta nas suas capacidades. Traços esses, que só emergem com uma força considerável um século mais tarde com o advento da segunda onda feminista. A primeira parte do livro é dedicada à infância da pequena e birrenta Jane. Por ser narrado em primeira pessoa, o leitor se torna rapidamente íntimo da garota, e acompanha aflito, os relatos de maus tratos sofridos por ela. Assim como a autora, Jane perdeu os pais quando nova e ficou sob os cuidados da tia, no romance, sra. Reed. Porém, sua tia e primos não eram nada gentis com a menina. Após anos de tortura e silêncio, Jane se impõe e condena a senhora por ser tão má. A sua rebeldia é tomada como algo demoníaco pela família, que decide enviá-la para o internato Lowood. As condições precárias do local logo incomodam Jane, que encontra um refúgio na sua eterna amiga e conselheira, Helen Burns. A religião e espiritualidade são vistas de formas distintas pela protagonista. A visão determinista da religião acreditada por Helen, confronta a crença de Jane na realização espiritual como o maior ensinamento religioso. Uma epidemia põe fim à vida de Helen e de outras meninas em Lowood, mas Jane supera a perda de sua única amiga através da pintura e leitura. Anos se passam e Jane torna-se professora na instituição. Entretanto, a jovem aspirava por mais. Sua plena realização se daria na conquista de outros espaços.
É então, por meio de um anúncio no jornal que ela se torna preceptora de uma menina numa propriedade em Thornfield, pertencente ao sr. Rochester. Jane é bem recebida pela governanta da pequena Adèle, Alice Fairfax. Já o seu primeiro encontro com o dono da mansão não é amigável. O dualismo, forte característica religiosa da sociedade inglesa, marca os personagens. Enquanto o aspecto selvagem, arrogante de Rochester esconde sua forte sensibilidade, a serenidade e outras virtudes morais advindas da sua conexão religiosa, não consomem Jane plenamente, que por muitas vezes deixa-se guiar pela razão. O misticismo é também outra marca do livro. Infere-se dessa subjetividade, uma crítica à sociedade patriarcal e de classes da era vitoriana. A visita da família Ingram à mansão, gera em Jane sentimentos de inferioridade em relação à sua classe e seu gênero. A esbelta Blanche Ingram e o rumor de seu casamento com Rochester levam Jane a desenhar um retrato seu comparando a superioridade da aristocrata a si mesma. Porém, a inesperada visita de uma cigana instiga a curiosidade das mulheres presentes na mansão. Estranhamente, todas voltam da consulta entristecidas, mas a última a vê-la, Jane Eyre, revela-se descrente no seu poder de prever o futuro e sua resistência perde força à medida que a misteriosa cigana desvenda suas mais íntimas emoções. Na verdade, a mulher por trás do chapéu era Rochester, que temendo entregar-se ao seu lado mais sensível, disfarça-se de mulher de uma classe muito inferior a sua, evidenciando assim, o preconceito de classe  e gênero impostos pela sociedade.
Enquanto o passado de Jane antes de sua chegada à Thornfield é marcado por uma valorização de sua moral, o de Rochester era destinado à degradação da mesma. Seu ímpeto nas paixões o levou a dois casamentos malsucedidos. Seu atual casamento resulta de uma aventura descrita como lasciva na Jamaica com Bertha Mason. Com o tempo, ele percebe a insanidade dela e a confina num quarto da mansão. A sua figura é retratada como mística por Jane que cita seus sons animalescos e utilização do fogo para aterrorizá-la. Rochester deseja se purificar da esposa diabólica pedindo à mão de Jane. Porém, Jane não sabe da relação entre ele e Bertha e aceita o pedido. É interessante notar mais uma vez a peculiaridade dela quando recusa de forma insistente os onerosos presentes de Rochester. O desespero em mantê-la revela seu aspecto possessivo. É fato que o protagonista se difere dos outros dos clássicos românticos. Suas falhas e mais defeitos que qualidades inquietaram os críticos da época, que entre outros motivos, contestaram a intrepidez do romance. Pode-se observar, então, outro alter ego da autora, além de Jane. A loucura de Bertha é justificada como hereditária. Em Brontë, a loucura encontra-se no meio familiar também. Tanto ela como suas irmãs Anne (A Inquilina de Wildfell Hall) e Emily (O morro dos ventos uivantes) eram escritoras primorosas que passaram suas curtas vidas se dedicando a essa profissão, porém, lançando suas obras sob pseudônimo masculino. A publicação sob seus próprios nomes seria um ato insano na época. A parte em que Bertha toca fogo e destrói a mansão, simboliza o desejo de ruptura com esse mundo masculino que domina ambas.
Mulheres arrojadas, que assim como Bertha, foram encarceradas por homens que se sentiam ameaçados por suas habilidades.
Enfim, Jane Eyre é sem dúvida, um clássico engenhoso por misturar tantos elementos místicos, espirituais e religiosos com uma narrativa bem estruturada. Muito mais pode ser explorado nesse romance como o personagem de St.John, primo de Jane e um missionário que devido as suas frustrações na vida, vê a felicidade da prima como uma afronta e a propõe em casamento com o intuito de retê-la. Apesar de sua beleza com traços suaves e elegantes, contrastando com o aspecto zangado e selvagem de Rochester, Jane oferece sua companhia apenas como amiga.
Leitor(x), Jane casa-se com Rochester; mas não espere um fim clichê, Jane o vê como um igual, alguém que aprendeu a amar na dor. Jane nunca nega sua independência e não a abdica ao formar uma família. A união do casal já era esperada, mas o que torna esse livro maravilhoso é notar a ruptura com vários lugares-comuns, especialmente no amor.

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