Crítica: L'une chante, l'autre pas (1977)
Os anos 70 fervia com as ideias revolucionárias feministas que ganharam força no fim da década anterior. O cinema norte-americano e francês apresentava então, uma nova roupagem às suas personagens femininas, que assim como as mulheres por trás das câmeras, estavam se reinventando. A cineasta francesa Agnès Varda experimenta as novas nuances feministas tanto na tela quanto na sua vida pessoal, sendo suas obras muitas vezes documentais, conferindo o realismo das transformações que aconteciam ao seu redor. Em Uma Canta, A Outra Não, Agnès retrata algumas das pautas mais levantadas no movimento das mulheres, como o aborto e a sororidade. Para isso, a diretora invade o cotidiano de duas mulheres de diferentes classes e estilos de vida, unindo seus destinos como uma prova legítima do poder transformador do feminismo em suas vidas. Varda é cuidadosa ao dar um toque suave nesse processo. Pauline (Valérie Mairesse) é uma estudante de classe média que ao visitar por acaso um estúdio de fotografia, reconhece o retrato de uma velha amiga que é casada com o fotógrafo e dono do estúdio. Sabendo da sua difícil situação, Pauline a visita a fim de ajudá-la. Suzanne (Thérèse Liotard) tem duas filhas mas não deseja dar luz ao terceiro que espera. Pauline diz que pagaria pelo seu aborto ilegal na Suíça, uma vez que nos anos 60 (época em que se passa a cena) era considerado crime na França.
Pauline mais tarde descobre que o dinheiro foi utilizado para ajudar o marido e que seu aborto lhe trouxe sérias complicações. Pauline, que também é chamada de Pomme (maçã em português) posa para Jérome, marido de Suzanne. Porém, ele se sente inconfortável, como se algo não estivesse certo. E realmente não estava, o otimismo e independência de Pomme representavam um contraste em comparação ao fotógrafo, que acaba se enforcando. A solidariedade de Pauline diante da dor na família de Suzanne se concretiza numa forte amizade no seu reencontro 10 anos depois.
Da esquerda: Suzanne e Pauline
Enquanto Suzanne retorna à casa dos pais numa área rural e pobre, Pomme conhece um iraniano pró- feminista e juntos participam de passeatas. Pomme aposta na vida de cantora compondo sobre o mundo feminino. Suas letras são simples, mas ricas o suficiente para tornar o filme amigável e lírico. Sua carreira e casamento começam a desmoronar ao passo que Suzanne volta à Paris e consegue estabilidade trabalhando num consultório médico. As duas amigas se reencontram em um protesto e juntas continuarão construindo suas vidas em meio a um movimento que proporciona possíveis novos rumos. O marido de Pomme assume um papel tradicional quando se mudam para o Irã. Sentindo-se aprisionada, ela sugere voltar à França e fazer outro filho com ele para que cada um fique com um. A facilidade com que ela consegue sua liberdade diverge da realidade da mulher árabe, sendo assim, o feminismo da mulher branca e de primeiro mundo era muito mais tangível do que outros.
Pomme sai em uma turnê com sua banda, já Suzanne casa com seu chefe e se mudam para uma casa de campo. O longa termina com diferentes gerações de mulheres reunidas e divertindo-se, com o enfoque na filha de Suzanne. Agnès Varda, que empresta sua voz para sintetizar a sincera amizade que as protagonistas desenvolve apesar dos contratempos, diz que ninguém sabia que o futuro seria mais simples para a nova geração, realçando que a luta por nossa libertação nos leva aos poucos ao autoconhecimento e a sua avaliação. Suzanne e Pomme demoraram anos para construírem sua própria felicidade, e sim Agnès, hoje é mais fácil nos articularmos e usufruirmos de muito da luta árdua de outras gerações, porém, temos que ser vigilantes para que nossos direitos continuem nossos.
Ademais, o filme possui uma fotografia vibrante e sua trilha sonora oferece um engajamento emocional a nós mulheres. Uma Canta, A Outra Não é o laço que une mulheres de diferentes realidades numa só luta, a da construção da própria identidade.
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