Minha foto
Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Bad Lieutenant (1992)



Na filmografia do diretor norte-americano Abel Ferrara, seus personagens vagueiam pelas tortuosas ruas nova iorquinas refletindo o seu estado de espírito. Em Bad Lieutenant (Vício Frenético em português) Ferrara apresenta o desorientado tenente, que sem nome, passa por um processo paradoxal de desumanização. Interpretado pelo grande Harvey Keitel — que até então já havia trabalhado com Scorsese e Tarantino — o mau tenente transparece ser tão áspero e impiedoso quanto os seus personagens nos filmes dos citados diretoresAo deixar seus filhos na escola, ele cheira cocaína dentro de seu carro bem próximo ao local. Ele não se intimida ao roubar as drogas das cenas de crime, ou quando deixa um ladrão sair impune. O personagem já está encurralado na sua espiral descendente. Nos filmes de Ferrara não há um herói, e sim protagonistas que sobrepujam sua moral e suas virtudes e agem como se não houvesse limites para suas ações. É assim que se construíram a assassina impiedosa em Ms.45 (1981)  e a vampira existencialista em The Addiction (1995). Dessa forma, assistimos ao personagem de Keitel  entregar-se sem hesitação as mais diversas drogas que cruzam seu caminho e ao endividamento por conta de apostas em jogo. 
Uma senhora que vive em sua casa o olha perplexamente, enquanto as outras mulheres da casa o veem com indiferença. Ele, desse modo, representa apenas um corpo, e já que não sabe que rumo tomou sua alma, o abusa com as drogas mais pesadas ao mesmo tempo que abusa outros, só que verbalmente.
Em uma cena, o tenente, nu, geme e chora de braços abertos na pose de Jesus Cristo. Sua franqueza traz à tona sua vulnerabilidade enquanto homem, e assim começamos a notar o paradoxo presente na sua imprudência. A atriz Zoe Lund, junkie real, aparece como uma fornecedora de crack e heroína em algumas cenas. Ela  as prepara e as aplica no personagem e depois em si. O tom real que se faz presente nos trabalhos de Abel Ferrara, confirma-se nesse, entre outros motivos,por conta do verdadeiro uso por Lund. '' Vampiros são sortudos, eles se alimentam em outros.Nós temos que nos alimentar em nós mesmos. Temos que comer nossas pernas para obter energia para caminhar. Temos que vir, para que possamos ir. Temos que nos sugar. Temos que consumir a nós mesmos até que nada reste, além do apetite.'' Narra a junkie ao assistir o tenente viajar. A imagem orgânica que se manifesta em tal passagem dá  abertura à superação da finitude do indivíduo, que busca por algo além, nesse caso, nas drogas pesadas. 


Porém, assim como o vício apraz até certo ponto a protagonista de The Addiction, ambos protagonistas têm seus destinos traçados pela possível redenção na espiritualidade. Para muitos, é somente por meio dela que alguém realmente transcende o físico. Ao se familiarizar com um caso de estupro de uma freira, ele não aceita o seu perdão diante dos criminosos. Confronta-se então, com a presença física crucificada de Jesus Cristo, fruto de suas alucinações por drogas ou não, a cena revela a exaustão nervosa do personagem com tamanha impunidade, que reflete a falta da mesma no seu mundo. Seu momento de consciência não o aproxima de salvação, mas sim constitui um fragmento  do derradeiro estágio de sua espiral. 
Em seu auto sacrifício em relação aos estupradores da freira, ele lhes dá uma boa quantia em dinheiro para que sumam de Nova Iorque, não visava nada virtuoso em troca,  a não ser a aniquilação do seu ser, que se encontrava insatisfeito na sua essência. 
Considerado um dos filmes preferidos de Scorsese, Vício Frenético é excelente ao contrastar a destruição ontológica do seu protagonista ao passo que se assemelha a um filme documental. Abel Ferrara mata seus personagens em cenas finais sempre provando que de certa forma, eles já estavam mortos desde a primeira cena dos filmes. Ademais, a atuação monstruosa de Harvey Keitel deixa dúvidas sobre o quanto de si mesmo o ator incorporou uma vez que há uma incrível intensidade no seu personagem. O mesmo vale para Zoe Lund, que se agarrou à heroína até o último dia de sua vida. 





Comentários

Popular no Blog...