Minha foto
Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Une Affaire de Femmes (1989)



A legalização do aborto na França só foi possível após muita luta que derrubou códigos e execuções que criminalizavam a prática. Em 1971,um manifesto publicado na revista francesa  Le Nouvel Observateur  alertava sobre a questão de saúde pública que é o aborto. Ele foi assinado por 343 mulheres, incluindo atrizes famosas como Catherine Deneuve, e  fomentado por médicos e cartunistas nos anos seguintes, culminando na sua legalização em 1975. Uma das histórias mais marcantes nesse processo de luta é a da nativa Marie-Louise Giraud, que durante a ocupação nazista na década de 40, performou abortos até ser executada pela lei que considerava a prática um crime contra a segurança de Estado. Sua trajetória foi retratada pelo diretor Claude Chabrol, protagonizando Isabelle Huppert no papel de Marie.
Une Affaire de Femme ou Um Assunto de Mulheres (1988) se passa em Cherbourg, onde Marie-Louise vive em condições de pobreza ao lado de seus filhos e do seu marido. Marie sente que algo falta na sua vida, algo que a afirme como mulher, para além de seus papéis de dona de casa e mãe.Observando que  mulheres próximas engravidaram indesejadamente de soldados alemães, e que outras não tinham condições de sustentar mais um membro na família, mesmo com a objeção masculina, Marie arrisca operar abortos em sua residência. 
Sua falta de educação escolar é evidente ao vermos que ela não consegue ajudar o filho na tarefa de casa e escrever cartas para o marido. Apesar disso, Marie vê no seu novo trabalho não só uma ação altruísta, mas também de objetivo pessoal, uma vez que se utiliza do pagamento para ter acesso a coisas melhores em casa. Quando se torna amiga da prostituta local, Lulu (Marie Trintignant) ela não apenas percebe que as mulheres que eram consideradas as mulheres livres da época, viviam melhor, como sabiam opinar sobre os assuntos do seu mundo. Sua relação com as mulheres do seu convívio é mais afetiva do que a que mantém com seu esposo. Sua amizade como uma judia, antes da mesma ser transportada por nazistas, se revela por meio de uma admiração do talento de Marie, que deseja ser cantora. Sua vizinha é a primeira a ter um aborto realizado, que lhe dá de presente, uma vitrola. No entanto, logo o procedimento se mostrou falho, levando à morte dela. Isso não a impede de continuar seu novo estilo de vida, mas abre o espaço à crítica dos riscos que a clandestinidade do aborto carrega, como a morte de mulheres; e esse é um dos pontos fundamentais levantado no manifesto das 343, que o define como questão de saúde pública.


Isabelle Huppert à esquerda seguida por Marie Trintignant.

Marie se delicia com sua nova condição social e desfruta de prazeres que antes não podia. Podemos julgar seu adultério ou sua atitude por permitir Lulu fazer programas em sua casa, mas esse não é o ponto de Chabrol ao realizar esta obra. A protagonista não vê nenhum mal em ajudar outras mulheres ao seu redor e quando seu marido a denuncia pela prática ilegal, ela vê  uma mulher, mais uma vez, como sua aliada. Quando presa, ela se aproxima de outra prisioneira que assim como Marie, vê o poder político patriarcal dos homens como altamente opressor, por não conceber direitos básicos a mulheres. A personagem de Huppert não demonstra arrependimento por não sentir culpa. A sociedade que se baseava em preceitos religiosos e confinantes da liberdade da mulher condena Marie à pena de morte por enforcamento. 
Incrédula de salvação, os olhos de Marie se encharcam de lágrimas enquanto xinga a mãe de Deus com o intuito de indiretamente xingar aqueles que usam a sua imagem como símbolo moral da maternidade. A hipocrisia ligada ao Estado que condenava minorias como judeus e mulheres controlando suas vidas não é apenas parte da história daquele período. Ainda nos deparamos com governos que minimalizam seus direitos alegando a  preservação dos valores da família. Além disso, em uma questão de gênero, ainda se observa a redução de danos ao outro sexo quando condenados por crimes voltados à mulher, como o feminicídio. A atriz Marie Trintignant foi brutalmente espancada até a morte pelo seu ex-companheiro em 2003. Ele só cumpriu 4 anos de pena em regime fechado e voltou a sua carreira de músico, com direito à capa de revista!  Indignação é o mínimo para definir  a revolta diante dessa impunidade. 
Estamos enfrentando mais e mais retrocessos nas questões de direitos das mulheres. Se não nos atentarmos, podemos nos deparar com mais casos  como o de Marie-Louise.

Comentários

Popular no Blog...