Crítica: Visages,Villages (2017)
Considerada a mãe da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico do século XX que revolucionou o modo de se fazer cinema, Agnès Varda permanece como uma das cineastas veteranas mais ativas dos tempos atuais. Sua relação com o cinema se dá de forma humanizada, concerne a les gens com histórias simples e esbeltas que o seu olhar subjetivo capta. A natureza exerce uma afeição particular na belga de 89 anos. Em suas obras antigas, é possível notar uma relação entre os personagens e paisagens naturais como a praia em La Pointe Courte (1955) e em Les Plages D'Agnès (2008); os campos em Les glaneurs et la glaneuse (2000), etc. Varda uma vez declarou o seguinte em uma entrevista concedida ao The Guardian na época de lançamento de Les Plages D'Agnès :
'' Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. Se me abrissem, encontrariam praias.''
Pela primeira vez em uma co-parceria com outro diretor francês, JR, a dupla produz um filme documentário que simboliza de forma sútil e necessária a grandiosidade de vidas consideradas pequenas no contexto capitalista selvagem. Visages, Villages une a beleza da simplicidade com paisagens esplêndidas em pequenas cidades ao redor da França. Assim como Agnès, JR possui um enorme interesse em capturar o que há de mais natural e belo em uma pessoa. O âmago de seus trabalhos encontra-se nas ruas. No entanto, JR é um pioneiro, com mais experiência como grafiteiro e evoluiu sua arte para colagens gigantes preto e branco em muros. Enquanto Varda ,com sua bagagem cinematográfica de mais de seis décadas, arrisca em eventualidades para conduzir o longa. Seu despojamento nunca é falho, pelo contrário, Visages, Villages ou Lugares, Olhares em português, flui de forma que suas vinhetas por si só representam momentos únicos, de solidariedade e espontaneidade que necessitamos no nosso cotidiano.
Agnès Varda e JR durante as filmagens de Lugares, Olhares
A dupla mescla suas habilidades exemplares e criam representações emocionantes nas vidas de uma garçonete, de uma mineira aposentada e de um grupo de mulheres que exercem funções desafiadoras, mas que são vistas apenas como esposas por conta do sexismo. Enfim, há gente bastante interessante e que comumente não ouvimos suas histórias, pois o tipo de cinema que nos habitamos, transmite aquelas que são fabricadas e que muitas vezes excluem vozes de quem faz a diferença no mundo real. As diferentes reações dessas pessoas quando se deparam com o resultado final das enormes colagens passam a importante mensagem de que não somos acostumados a perceber nossa grandeza como seres humanos. Agnès é uma daquelas pessoas que nos ensinam como a arte pode ressignificar aquilo que somos. Vejamos por exemplo quando ela se refere ao seu problema de visão. Acompanhamos a cineasta em procedimentos delicados que são referenciados por ela de forma simbólica, como quando ela os compara ao filme surrealista de Buñuel, Um Cão Andaluz, ou quando um grupo de jovens reproduzem um teste de visão com letras grandes. A forma como retrata um momento complicado em sua vida, que põe em risco seu instrumento de trabalho mais precioso, demonstra que podemos lidar com nossas dificuldades se contamos com a arte, com a solidariedade ao próximo, sem nos limitarmos ao que nos aflige e que por ventura, faz a gente se sentir menor.
Um dos detalhes que mais me fascinaram no longa foi a apreciação que Varda mantém por seu amigo de longa data — termo empregado em respeito à ilustre diretora — Jean-Luc Godard. Ela desvelou a obscuridade por trás dos óculos escuros indispensáveis ao diretor através de seu curta Les Fiancés du Pont Mac Donald em 1961. JR a lembra muito Godard por conta dessa relutância em retirar os óculos. No entanto, me decepcionei quando no final do documentário, a cineasta pega um trem a fim de reencontrar seu colega de Nouvelle Vague na Suíça, mas ele não aparece, deixando apenas uma mensagem enigmática na porta de sua casa que remete ao passado de Varda com seu falecido esposo e renomado diretor, Jacques Demy (Les Parapluies de Cherbourg). Outras memórias da belga permeiam o delicioso longa e dão vida a lugares inusitados. Uma imagem antiga de seu amigo fotógrafo Guy Bourdin sentado na praia de Normandia, oferece um novo sentido a um bunker nazista abandonado durante a Segunda Guerra.
Minha reprodução preferida por JR.
Visages, Villages concorreu como melhor documentário na edição do Oscar deste ano. Uma indicação importante, pois as mulheres ainda representam um número pequeno no mundo do cinema, especialmente as diretoras, em relação aos homens. Agnès Varda, apesar da idade, transmite vivacidade e sagacidade que se contrastam com o aspecto cético de colegas cineastas, como Godard. Ela é uma preciosidade no cinema atual, e aguardo ansiosamente sua próxima obra que assim como esta e tantas outras, nos fazem sonhar com um dia melhor nas nossas vidas e claro, na do próximo.
Comentários
Postar um comentário