Minha foto
Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Anos Rebeldes (1992)

Anos Rebeldes – Wikipédia, a enciclopédia livre 

Por várias décadas, a abordagem das séries televisivas sofreu mutações e uma certa evolução mais engajada e consciente do seu papel social, principalmente após o período da Abertura Política com temas mais expressivos e livres.
 Algumas das séries mais lembradas pelo público são globais, isso porque o monopólio da emissora foi conquistado durante a longa ditadura militar brasileira e mesmo décadas após o fim do regime, a Rede Globo ainda ocupa um grande espaço na televisão. Muitos devem lembrar das séries protagonizadas e dirigidas por Regina Duarte na década de 80; elas traziam uma roupagem da mulher pós segunda onda feminista, ocupando mais espaços e descobrindo como conciliar seus diversos papéis. No entanto, Regina refuta o feminismo e sente vergonha das suas personagens com mais poder de decisão;  com tanta contradição em suas ideias e o que suas personagens representam, é melhor pular para a década seguinte, em que realizadores promovem uma série com contornos políticos mais concisos.

Em 1992, Gilberto Braga escreve Anos Rebeldes como resposta à demanda popular por uma continuação de Anos Dourados, outra série a qual foi roteirista. Anos Rebeldes foi inspirada em dois livros importantes da nossa literatura: 1968 – O Ano que Não Terminou, de Zuenir Ventura, e Os Carbonários, de Alfredo Sirkis. Sob as direções de Dennis Carvalho, Ivan Zettel e Silvio Tendler, a série foi pioneira em retratar a época da ditadura militar brasileira.

Há 25 anos, estreava Anos Rebeldes
 Cássio Gabus Mendes como João Alfredo Galvão e Malu Mader como Maria Lúcia Damasceno em Anos Rebeldes (1992). Foto:TV Globo






Anos Rebeldes - Alchetron, The Free Social Encyclopedia
Da esquerda para a direita: Edgar Ribeiro (Marcelo Serrado);  Galeno Quintanilha (Pedro Cardoso);  Valdir (André Pimentel) como bons companheiros em Anos Rebeldes. Foto:TV Globo


Anos Rebeldes  se divide em três períodos decisivos na nossa história política: os anos inocentes; os anos rebeldes e os anos de chumbo. A trama se inicia com os inflamados estudantes do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro e os rumores sobre uma suposta perseguição a comunistas pelos militares.Na escola, os idealistas João Alfredo e seu melhor amigo Edgar conhecem , ao mesmo tempo, Maria Lúcia. Filha de um renomado jornalista e comunista, Orlando Damasceno (Geraldo Del Rey). Maria se encanta por João, mas a paixão entre os dois logo resultaria em um entrave: seu pai e seu companheiro são muito parecidos, militantes fervorosos,  e por conta do seu trauma em relação aos riscos que seu pai correu enquanto comunista,  teme passar pelo mesmo com seu amado. As coisas se agravam quando o golpe que retira João Goulart do poder e o cede para os militares se configura como o período de maior repressão e violência vivido neste país. Isto significa que tanto os inflamados alunos quanto o pai de Maria Lúcia corriam risco. Nessa dura transição política, vemos as relações entre os personagens se delineando pela postura política; não estamos tão longe disso desde que um presidente fascista assumiu o poder em 2018.

É importante ressaltar a notoriedade de uma série como Anos Rebeldes nos dias de hoje. Há quem clame pela volta da ditadura; o atual presidente rasga elogios a torturadores e nesse mesmo governo, opera-se uma forte censura em relação à liberdade de expressão. Embora os criadores da série aleguem que a ditadura é pano de fundo, ela funciona na verdade como protagonista  e na época de exibição, o público não entendia a sua relevância, pois somos um povo sem memória e o caos político atual é reflexo disso. Apesar disso, afirma-se que a série foi fundamental para motivar estudantes a organizarem manifestações a favor do impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, baseado em denúncias de corrupção; e as manifestações dos "caras-pintadas" traziam como pano de fundo, a canção tema da série: Alegria, Alegria de Caetano Veloso.

Canal Viva reestreia a minissérie “Anos Rebeldes” | :: seriados.tv ...
Da esquerda para a direita: Heloísa Andrade Brito (Cláudia Abreu) e   Natália Andrade Brito (Betty Lago) representando mãe e filha em Anos Rebeldes. Foto: TV Globo



Dos anos inocentes para os rebeldes, os personagens principais decidem se se engajam com a militância ou se correm atrás de sonhos tradicionais como se formar, trabalhar e constituir uma família. A série mostra que conciliar ambos seria impraticável, pois, a repressão passou da confiscação de livros "subversivos" para prisões e torturas, o que exigia uma dedicação integral no planejamento e execução de estratégias. Sendo assim, o romance entre os protagonistas João e Maria Lúcia será posto em dúvida até ele perceber que não tinha como voltar do caminho da militância.  Na série, vemos outra personagem feminina ganhando gradualmente mais espaço dentro da trama. Heloísa é filha de um dos empresários que apoiou a ditadura, Fábio Brito (José Wilker), mas seu privilégio não a impede de enxergar além e se rebelar contra tudo aquilo que o pai representa. Os embates entre pai e filha são muito intensos e culminam na que é para mim, a melhor cena da série.

 Falarei desta cena mais adiante, enquanto isso, é importante também comentar sobre a matriarca da família; Natália representa as expectativas sobre o que é ser mãe e esposa na sociedade patriarcal. Ela é subserviente e sofre calada com as diversas traições de Fábio.  Heloísa entendeu desde cedo que o lugar de submissão da mulher não poderia ser seu, e assim, busca sua autonomia ao decidir com quem transar pela primeira vez e ao emitir suas fortes opiniões. Sua personagem é, sem dúvida, reflexo das transformações socioculturais da década de 60, em que a libertação sexual da mulher marca os primeiros passos da segunda onda feminista. Além disso, suas atitudes remetem a de  ícones  como Leila Diniz e Brigitte Bardot (ambas citadas na série). Referência à cultura pop é o que não falta em Anos Rebeldes, o que a crítica viu como exagero devido ao constate recado de que aqueles eram os anos 60. O personagem entusiasta Galeno é o que mais cita referências por conta de seus anseios artísticos. Suas tentativas são ousadas, especialmente a de lançar uma novela sobre a escravidão, mas sofre forte censura; faltou uma maior exploração da censura e do protesto artístico, o que se restringiu mais a vinhetas  gravadas preto e branco e em 16 mm que se alinhavam com arquivos da emissora que registraram acontecimentos políticos e culturais marcantes da época. A riqueza dos arquivos deve-se claro, à superioridade televisiva que foi garantida à Globo durante o regime. Sim, aqui temos uma ambiguidade gritante e que afetou diretamente um olhar mais aprofundado sob os aspectos mais obscuros da ditadura.

A relação entre Natália e Heloísa muda quando a filha desperta na mãe a consciência do quanto deixou de viver por causa do casamento. Heloísa também tinha se casado e percebeu que a última coisa que precisava era ser dependente de um homem. Ao buscar ares libertários, Natália acaba conhecendo o professor de cursinho de Heloísa, Inácio Avelar (Kadu Moliterno), e se envolve amorosamente. Isso gera uma reflexão sobre como julgamos de forma preconceituosa, a mulher e o homem que traem. Nesse caso, Natália não se separa de Fabio pela dependência financeira e por conta de sua  reputação enquanto mulher, enquanto Fábio não teria com o que se preocupar já que suas desculpas recaem na velha jogada machista de ter a mulher da "casa" e a da "cama", ou pior, de que "a carne é fraca". Tenho certeza que as atrizes Claúdia Abreu e Betty Lago jamais se arrependeram de interpretar mulheres com forte poder de decisão. Elas sim representam, de forma consolidada, a inconformidade com conjunturas políticas para além das telas


Em tempos de 'Amor e Revolução', nada como 'Anos Rebeldes'
Heloísa e João Alfredo durante os anos de chumbo em Anos Rebeldes. Foto: TV Globo
 
A relação entre Heloísa e seu pai se torna mais acirrada quando essa se junta à luta armada. Durante os anos de chumbo, período mais repressivo da ditadura com a edição do AI-5, ficou proibida qualquer manifestação e, se fosse contra a ditadura, não se teria mais habeas corpus. Além disso, o presidente teria direito a fechar o Congresso Nacional. Qualquer coincidência com os anseios da família fascista que assume o Brasil de hoje não é por acaso. João e outros guerrilheiros não veem outra saída a não ser pegar em armas para combater com veemência a opressão vigente, mas para isso, precisariam adentrar a clandestinidade. E a melhor cena da série tem a ver com o que não dava mais para esconder. Heloísa foi presa e somente libertada por causa da influência de seu pai; porém, Fábio acredita que na prisão, sua filha foi tratada com delicadeza pelos oficiais. Nesse momento, ela tira a sua camisa e mostra marcas de queimadura de cigarro pelo corpo. A cena é marcante porque mostra a verdade nua e crua sobre a ditadura que muitos negam enxergar. Ainda assim, Fábio questiona a veracidade do que está na sua frente e Heloísa decide seguir em frente sem olhar para trás.

A pedido de Boni,  "mandachuva" da Rede Globo, a série teve que ser reescrita quando Gilberto começou a pegar mais "pesado", sob a alegação de que o foco era o romance e não a ditadura. De acordo com o livro "Toda mulher é meio Leila Diniz" da autora Mirian Goldenberg, Boni  chamou Leila Diniz de puta quando ela o telefonou para um papel na televisão. A questão aqui é que a Globo apoiou e recebeu muita proteção da ditadura militar e entre muitos acordos, estava o de vetar Diniz da mídia por conta de sua atitude que ia de encontro com o silêncio cultural imposto. Com Anos Rebeldes, temos a emissora querendo se redimir pelo seu passado, mas não consegue totalmente ao censurar o lado mais verossímil, o da violência, com os atos institucionais número 5 em diante.

Apesar disso, a série não perde totalmente a mão e mostra como acontecias os sequestros de embaixadores em troca da libertação de presos políticos . Em meio a uma fuga após a libertação do embaixador da Suíça, Heloísa é morta por um carrasco. Sua morte simboliza a daqueles que morreram pela pátria e que viveram com razão. O desfecho da série vem com a Lei da Anistia de 1979, quando João e outros guerrilheiros retornam ao Brasil, o que não significava o fim da luta.  Maria Lúcia e Edgar estavam vivendo juntos como casal de classe média alta, e mesmo após o divórcio e tentativa de reconciliação com João, Maria Lúcia reconhece que se um dia não se entregou a luta, ela não conseguiria depois de tanto tempo. A composição de Belchior "Como Nossos Pais" na voz de Elis Regina se encaixa perfeitamente no momento final da série. A letra que fala sobre a acomodação dos jovens que pararam de lutar por um país mais justo não dialoga somente com os personagens de Anos Rebeldes, mas também com a nossa geração que ainda permanece sem memória política e que elegeu um adorador da ditadura. Termino esse post com o trecho mais emblemático e atemporal da música, com a mesma esperança de Belchior e de João de que um dia esse quadro mude.

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais


Menções memoráveis:



Anos Rebeldes - YouTube
Heloísa e Marcelo (Rubens Caribé) formaram um casal que Maria Lúcia e João não pode ser. Marcelo desde o início da série se manteve firme na luta contra repressão. Foto: YouTube



Anos Rebeldes – Memória
Sandra (Deborah Evelyn) foi assim como Marcelo, ativista desde o início e as nuances de sua personagem fogem de padrões femininos. Foto: TV Globo


Anos Rebeldes – Memória
A advogada Mariana (Susana Vieira) é agredida por agentes da repressão por não ser dedo duro e seu caso já dava indícios de que o pior estava por vir naquele ano de 1964. Foto: TV Globo



Comentários

  1. Oi!
    Gostei da resenha, acabei lembrando dessa série da qual gostei muito. O impacto das cenas de Heloisa realmenre foram bem grandes, afinal, cenas que mexiam com o tema tortuta pela repressão eram pouco mostradas. Exceção honrosa foi o filme Pra Frente Brasil.
    Quamto à cena da morte de Heloisa, vejo no quadro geral o seguinte:
    1. ela sai do carro
    2. jovem soldado a observa
    3.ela busca algo na bolsa
    4 .delegado manda atirar
    5. soldado atira.
    Em 1. Observei um ar de debochada ingenuidade nela, relembrando a Heloisa da primeira fase. Naquele olhar fechava-se o seu ciclo, mesmo sem indicar isso.
    Em 2. O jovem soldado parece perdido diante da moça enigmatica à sua frente e sob sua mira.
    Em 3. Não havia motivos para atirar, mas ela era um troféu para o delegado, sua vida principalmente. E aqui faço um parênteses para entrar na realidade da época e de como delegados da repressão - Sérgio Paranhos Fleury principalmente - tratava as gerrilheiras presas ou em capturas. As torturas nas mulheres eram infinitamente mais cruieis e violentas do que nos homens.
    Por fim, concordo com você na questão de a globo ter amaciado a história do período na minisserie. Ela só veio trabalhar o tema tortura na minisserie Os Dias Eram Assim, quase trinta anos depois de Anos Rebeldes.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Raimundo, ainda assim, muitos dizem que Os Dias Eram Assim não chega nem aos pés de Anos Rebeldes, não sei os motivos pois não assisti. E sim, Heloísa para mim é personagem chave pois é a mais próxima do real do que se viveu na época de repressão. Ela é uma personagem complexa e tem muito que se pode falar dela que não coloquei aqui. Obrigada pelo comentário!

      Excluir
  2. Sou apaixonada por esta série e gostei muito da crítica. Revendo a série, observei muitas "coincidências " com o momento que vivemos. Triste constatação.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Popular no Blog...