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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Resenha: Toda Mulher É Meio Leila Diniz, Mirian Goldenberg (1995)


Minha cópia da segunda edição do livro "Toda Mulher É Meio Leila Diniz"

"Toda mulher quer ser amada
Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
Toda mulher é meio Leila Diniz"
Todas as Mulheres do Mundo- Rita Lee / 1993

Eu conhecia Leila Diniz só de ouvir falar. Sempre se referiam a ela como "musa"; "revolucionária" e outros termos positivos que tornavam a sua imagem altamente instigante; e foi em busca de conhecer quem era esse ícone que li o livro da autora Mirian Goldenberg, "Toda Mulher É Meio Leila Diniz". Esse livro é, na verdade, uma adaptação de sua tese de doutorado e desse modo, buscou apontar os meios que consolidaram a figura de Leila Diniz. É uma obra relevante, pois, estuda de forma crítica e reflexiva, a trajetória de Leila que tinha sido até então, baseada apenas em recortes que não rasuravam a imagem da mulher-mito. Mirian analisa todos os olhares sobre a história da atriz carioca e assim faz do seu, o mais apurado na compreensão de quem foi essa mulher tão marcante.

Leila Roque Diniz nasceu em 25 de março de 1945 em Niterói, Rio de Janeiro. Seu pai, Newton Diniz, era comunista e ávido leitor, já sua mãe, Ernestina, religiosa e hipocondríaca. Leila também tinha irmãos como Elio, Ely, Regina e Lígia que fornecem depoimentos precisos ao livro. Ernestina criou Leila até os seus 7 meses de vida quando foi internada por tuberculose e só saiu tempos depois. No entanto, o seu isolamento social trouxe consequências ruins, uma vez que se reunir  com seus filhos e demonstrar o afeto materno soaria artificial, e assim, desistiu do contato; Leila e os irmãos tentaram conviver com a mãe quando maiores, mas o seu quadro hipocondríaco e sua forte religiosidade foram empecilhos para a permanência no lar. Leila cresceu, então, com a nova família do pai. Isaura era sua madrasta e mãe de Regina e Lígia, mas Leila só descobriu  sobre a adoção aos 10 anos, o que a levou a suas primeiras revoltas e conflitos internos. A autora destrincha esse núcleo familiar a fim de explicar que, acontecimentos na infância são base para comportamentos que eclodem em fases posteriores. O comunismo e o ateísmo do pai se refletem na carioca no sentido de serem identidades subversivas aos padrões morais, assim como a forte influência que seu pai tinha na vida de todos seus irmãos. Já a sua madrasta representava um lado autoritário e ao mesmo tempo de liberdade sexual e esta seria a mais marcante para Leila, enquanto a primeira afetaria mais os seus irmãos de sangue.

Leila Diniz, que queria ser uma explosão aos 100, faria 70 anos ...
Leila Diniz  Foto:Divulgação/Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro

Leila sempre manteve um diário consigo o que transmite uma relação de auto conhecimento e de reflexão sobre o mundo ao redor. Durante a sua adolescência, Leila frequentou um analista e saiu  da casa dos pais, e isso tudo revela que ela formaria suas identidades nos seus próprios termos. A carioca costumava assinar seu nome com um círculo e um ponto no meio, em uma analogia ao encontro de sua essência quanto mais o círculo se aproximava ao centro; e ser Leila Diniz foi acontecendo de forma genuína e autêntica, pois, ela encontrou a sua liberdade nessa relação íntima e bem resolvida com o seu interior e então se lançou ao mundo como a moça que não apenas se dizia livre, mas que também pôs a liberdade em prática. Essa reflexão é bem elaborada na obra de Mirian que humanizou a Leila pré-ícone.

As coisas começam a mudar a passos largos quando Leila abandona a carreira de professora infantil para se tornar atriz. Sobre sua breve passagem na escola, é preciso ressaltar que seu ar libertário ressoou já ali. Nas suas aulas nada de mesa de professor criando barreira entre professor-aluno. Leila deixava seus alunos à vontade para brincarem, falarem o que era considerado palavrão na visão moralista, e sua ideia à frente do tempo em relação à socialização na educação causou mal estar nos pais e na gestão escolar; o destino lhe reservaria, dessa forma, um meio em que sua liberdade pudesse ser melhor aplicada. É assim que ela para no meio artístico primeiro como modelo de propagandas e depois como atriz. 

Foi ao frequentar os bares nas noites da Zona Sul do Rio que Leila se envolveu com grupos de artistas. Ela quem tomava a iniciativa de dormir com quem quisesse e sempre que perguntavam se tinha algum ator com quem ela ainda não tinha se envolvido, zombava. Em alguns vídeos sobre Diniz no YouTube, já li comentários como: "ela confundia liberdade com libertinagem";  isso é um nítido exemplo de quem, tanto contemporâneo de Leila quanto de épocas posteriores, pinta seu quadro com um olhar moralista e repressor. Quando ela dizia "Eu posso dar para todo mundo, mas não dou para qualquer um" ou ainda “Quando o negócio está bacana, geralmente sou fiel. Quando eu estou com uma pessoa, eu fico muito ocupada com ela”, ela demonstrava total poder de escolha sobre o que fazer com o seu corpo, já admitiu ter abortado, e sendo assim, fica incabível de enquadrá-la em moldes tão limitados.
“(…) Sou plenamente pelo amor livre, inclusive acho absurdo esse negócio de moça se casar virgem. Pense bem: a mulher ter data marcada para perder a virgindade… Quando a mulher ama de verdade, ela tem de amar de verdade, um amor total, sem compromissos com datas ou falso moralismo (…)”

 Leila atuou no total em 12 novelas, 15 filmes  e em algumas peças teatrais; ela odiava teatro, porém, lembrava com carinho como foi trabalhar com a dama do teatro brasileiro, Cacilda Becker. A autora traça um paralelo entre as vidas e as carreiras de ambas mostrando que enquanto Cacilda levava uma gama de emoções e incorporações aos palcos, Leila levava o seu próprio jeito de ser para a tela. E essa continuidade entre vida e arte se faz presente naquele que é ainda considerado o seu maior papel. Em "Todas As Mulheres do Mundo" de Domingos Oliveira, vemos Leila protagonizar a sua própria história de amor ao lado de Domingos. Os  dois foram casados  por 3 anos, mas a separação foi mais dolorosa para ele que viu no filme uma tentativa de ter Diniz de volta. 

Todas as Mulheres do Mundo" é o filme de setembro da Mostra Cine ...
Leila como 'Maria Alice' e Paulo José como 'Paulo' em "Todas As Mulheres do Mundo" (1966) Foto: Reprodução

A postura transgressora de Leila pode ser muito mais sentida em suas entrevistas do que em suas atuações. Talvez por esse motivo poucos se debruçam sobre a análise de Leila como atriz. Outro obstáculo seria a perda de arquivos de várias novelas que atuou. Apesar disso, Goldenberg pontua que Diniz ganhou projeção nacional ao atuar na novela O sheik de Agadir (1966) como Madelon. A atriz Marieta Severo também estava no elenco e as duas se tornaram grandes amigas. Leila não almejava construir uma carreira padrão como Cacilda Becker, e sim, atuar por diversão, por isso escolhia "a patota", como ela mesma identificava o termo "a galera" que fosse mais descontraída para trabalhar. É importante destacar que isso não significava que não levava seu trabalho a sério, como disse uma vez a sua grande parceira d'O Sheik: " Apesar de ter uma aparência de porra-louca, irresponsável, Leila tinha uma seriedade profunda, era disciplinadíssima. Nunca vi ninguém se relacionar com um personagem de novela como ela".

Um ponto importante a ser refletido são as transformações sociais, políticas e culturais na década de  60 e como foram se incorporando no cotidiano das pessoas. Se Leila ficou limitada a papéis pouco desenvolvidos é porque as condições para que as mulheres ganhassem mais espaços e assim, mais facetas, ainda estavam ganhando corpo e forma e só bem depois seriam consolidadas, também frisando a censura da ditadura militar. Prova disso é a novela oitentista Malu Mulher com Regina Duarte, em que sua personagem tenta conciliar esferas tanto públicas quanto privadas, refletindo as conquistas feministas da segunda onda do movimento.

Além disso, Leila representava a incorporação da libertação feminina e  apesar de não levantar bandeiras, tinha consciência de que sua liberdade vinha com um preço, mas não ia desistir fácil das suas duras conquistas.Se hoje dizemos que Leila é "revolucionária", na sua época era considerada "puta". Mas seu pioneirismo era parte de algo maior que não tinha como voltar atrás. E por que a carioca se destacou tanto? porque cada frase que falava simbolizava o que muitas mulheres pensavam mas nunca diziam ou faziam, e se faziam, era escondido; sua revolução pessoal ressoaria de forma política aos certos e aos errados. Aos certos, significaria a ruptura com padrões e aos errados, a tentativa de silenciar a atriz fluminense.


Leila Diniz e Marieta Severo em O Sheik de Agadir | Atriz ...
Leila Diniz  como  'Madelon' e Marieta Severo como 'Éden de Bassora' em 
O Sheik de Agadir (1966) da dir. Glória Magadan Foto: TV Globo



Em 1964, o Brasil foi tomado por um golpe militar que resultou na instauração de uma ditadura fascista e violenta. O capítulo mais obscuro da história do país se iniciou com a aplicação do AI-5 em 1968, e qualquer um que se opusesse à ditadura, estava sujeito à prisão e tortura. Vários artistas da contracultura brasileira se exilaram no exterior e muitos que permaneceram no Brasil tiveram que moldar seu protesto nas entrelinhas. É possível observar que foi durante esse período repressor (1968-1972) que Leila Diniz firmou sua marca como revolucionária. Em 1969, ela cedeu uma entrevista emblemática ao debochado e renomado jornal O Pasquim. Goldenberg disponibiliza a entrevista na íntegra no final do livro, como se permitisse Leila de terminar a obra falando por si mesma.

 Os editores do jornal estavam cientes da censura e por isso substituíram os palavrões da atriz por asteriscos, um total de 72 que formaram uma constelação. A edição de Novembro de 1969 vendeu 117 mil exemplares pelo Brasil e entre os temas abordados estavam assédio sexual nos bastidores da TV; virgindade e sexo; lesbianismo (sic); entre outros temas tabus que ainda hoje causam polêmica. Entretanto, é importante notar que Leila não era totalmente desconstruída, pois não há necessidade de se cobrar uma total representação positiva quando o contexto da época não permitia ir além. Por exemplo, quando no fim da entrevista, fala-se sobre lésbicas, a visão tanto do entrevistador quanto de Leila parte da construção machista de não validar a lesbianidade e é retratada como uma simples ausência paterna/afetiva. As feministas tradicionais da segunda onda muito criticavam Leila por causa da sua devoção aos homens; e por conta da postura radical de muitas, foram desde cedo tachadas como "odiadoras de homens" e isso repelia mulheres héteros e com vida sexual sem amarras como Leila.

Não demorou muito para que a entrevista repercutisse no regime opressor e desse modo, no início de 1970, entrou em vigor um decreto-lei que proibia práticas liberais, como o amor livre, tão defendido por Leila. A medida ficou conhecida como "Decreto Leila Diniz" e logo ela seria obrigada a assinar um documento se comprometendo a não mais usar palavrões. Como consequência disso, a atriz foi perdendo espaço na TV sendo categorizada como "puta". Teve rápida passagem pelo programa de calouros do seu amigo Flávio Cavalcanti, e quando sentiu que a polícia estava a vigiando, refugiou-se no seu sítio. A autora vai além dos recortes musa/alegria/revolucionária e mostra que a vida de Leila também foi marcada por tensões e tristezas.


Pasquim Leila Diniz – Entrevista completa de Leila Roque Diniz, ao ...
A icônica entrevista ao jornal O Pasquim (1969) Foto: Reprodução

O início da década de 70 mostra uma Leila tolhida de direitos e papéis. Mirian observa que a atriz optou pelo teatro de revista, o que era inferiorizado na hierarquia da carreira artística; e a decisão de representar nessa forma como vedete era algo que gostava e ela conseguia superar os obstáculos com grande estilo. Atuou em mais algumas novelas e em 1971 realizou o grande sonho de ser mãe. Até em sua gravidez Leila soube incorporar novos jeitos de ser mulher. Quando seu ginecologista afirmou que o sol seria bom para o bebê, a atriz colocou seu biquíni e causou na praia de Ipanema. Até então, expor o corpo grávido era tabu e mais uma vez, Leila rompe com ideias moralistas de forma natural e assim inventava uma nova forma de ser mãe, como pontua Mirian. Outra questão relevante é que o pai da criança, o cineasta Ruy Guerra não era casado com a atriz e apesar do relacionamento sério, cada um vivia em sua casa. A decisão do casal em ter uma criança e viver em lares separados demonstra muita maturidade e também uma ruptura com o molde esperado da família tradicional.

Dando continuidade ao trabalho como vedete no teatro de revista, Leila levava sua pequena Janaína (nomeada por causa de Iemanjá e revelando a íntima relação entre Leila e o mar), aos bastidores do teatro e amamentava publicamente. Recentemente a questão da amamentação pública foi novamente posta como tabu e Leila naturalizou o ato em uma época mais opressora. Infelizmente, como ironia do destino, Leila só pode conviver com a filha até os seus 7 meses, a mesma idade que foi deixada  por sua mãe; e  a atriz sempre dizia que não queria que a filha crescesse sem ela como aconteceu no seu passado. Diniz hesitou, mas devido à carência financeira e profissional, topou viajar até a Austrália com o diretor e grande amigo Luiz Carlos Lacerda a fim de  promover o filme que atuou, Mãos Vazias (1971). Entretanto, por conta de saudades da filha que ficou no Brasil, antecipou a sua volta e a bordo do DC-8 da Japan Airlines, o avião explodiu  por razões ainda desconhecidas. Alguns alegam sabotagem da ditadura militar, outros, a alta temperatura daquele dia, que foi observada no diário da atriz.

Leila Diniz tinha apenas 27 anos e sua vida intensa e memorável a coloca no clube dos 27 composto por outros artistas que revolucionaram gerações como Kurt Cobain e Basquiat. Sua filha foi criada por sua melhor amiga, Marieta Severo e seu então esposo, Chico Buarque. Alega-se que o consumo de bebida alcoólica naquela fatídica semana aumentou drasticamente na Zona Sul do Rio. Leila ficou assim, imortalizada e sempre referenciada quando se fala sobre transgressão feminina no Brasil. A obra de Mirian Goldenberg, que retirou o título da canção de Rita Lee, vai além dos fatos que consolidaram a imagem da atriz fluminense. Ela a humaniza e amplia as suas  facetas, tornando o seu livro necessário para uma maior identificação com Leila além da mulher-mito. Precisamos espalhar a história de Leila sempre, pois, ela foi uma das raras pessoas que jamais desistiram do seu poder de voz e escolha nem mesmo diante de governos opressores. Já me sinto muito Leila Diniz e qualquer um pode se sentir ao lutar por um mundo mais verdadeiro e igualitário. 




À la Leila Diniz:Ivete e Débora lacram de biquíni e barrigão
Leila grávida de biquíni em 1971 Foto: Reprodução



Toda mulher é meio Leila para sempre Diniz - Jornalismo Júnior
Amamentando Janaína no intervalo de Vem de Ré que Estou de Primeira  Foto: Manchete



Curiosidades:

  • Leila também era poeta e o seu poema mais conhecido foi posto em um dos seus filmes e também musicado por Milton Nascimento na faixa Leila Diniz.



Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
O mar é das gaivotas
Que nele sabem voar
O mar é das gaivotas
E de quem sabe navegar.

Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
Brigam Espanha e Holanda
Porque não sabem que o mar
É de quem o sabe amar.


  • Leila escrevia em seu diário até o exato momento da explosão. Seu cunhado o encontrou em meio aos destroços. Eis aqui a sua última anotação:


“As saudades de Janaína são muitas. Será que estou sendo a mãe que ela merece? A babá tem ficado mais tempo com ela do que eu. Desse jeito, a mãe acabará babá, e a babá, mãe. Estamos chegando em Nova Déli. Segundo anunciam, a temperatura local é quase a do inferno. Quente paca. Agora está acontecendo uma coisa es…”

  • Participou, em 1968, da passeata dos Cem Mil No Rio de Janeiro em protesto contra a ditadura militar.   

Passeata dos Cem Mil, Rio de Janeiro
 Da esquerda para a direita, as atrizes Eva Tudor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell.

Algumas novelas e filmes notáveis:

Ilusões Perdidas (1965)
Eu Compro Esta Mulher (1965)
O Sheik de Agadir (1966)
Todas as Mulheres do Mundo (1967)
O Direito dos Filhos (1968)
Edu, Coração de Ouro (1968)
A Madona de Cedro (1968)
Corisco, o Diabo Loiro (1969)
E Nós, Aonde Vamos (1970)
Mãos Vazias (1971)


Outros textos sobre a vida de Leila Diniz que recomendo:

https://anovicacinefila.blogspot.com/2016/05/para-sempre-leila.html

http://www.imperioretro.com/2016/02/leila-diniz-o-simbolo-de-todas-as.html

Comentários

  1. Excelente análise do livro e da vida desta que além de fantástica atriz, é um dos nomes símbolos da luta feminina pela liberdade e independência

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  2. Parabéns por ajudar a manter o legado da Leila vivo na nossa luta diária por mais liberdade, amor e vida! ♥

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    1. Oi Pedro, agradeço seu comentário. Se depender da gente, Leila vai sempre ser pauta de nossas conversas haha!

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