Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath.
Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!
Crítica: Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo (2014)
Eu e minha cópia da segunda biografia de Christiane F. 'A vida apesar de tudo'
Christiane Vera Felscherinow, mais conhecida como Christiane F., nasceu em uma Alemã dividida há 59 anos. Esse cenário político se refletiu diretamente nas desigualdades socioeconômicas e na reação cultural, na qual os jovens buscavam refúgio a tantas problemáticas no rock, que evoluía a passos largos, tornando-se mais complexo, abrasivo e libertário. Christiane buscou esse refúgio logo cedo. Ela tinha menos de 14 anos quando discos do David Bowie fizeram a sua cabeça enquanto sua família se encontrava dividida: sua mãe tinha um novo companheiro e seu pai, alcóolatra, morava em outro lar. Porém, enquanto sua família estava unida, seu interior foi devastado em pedaços. Seu pai a abusava como também o fazia com a sua irmã, e sua mãe estava mais preocupada com sua beleza e seus namorados do que com os cuidados das crianças (isso segundo as próprias palavras de Christiane).
Na cena underground de Berlim da década de 70, a desamparada garota experimentava diversas drogas até chegar à heroína na discoteca SOUND, através da sua primeira paixão, Detlef. Toda a história a partir daí chocou a sociedade e o livro de 1978 — mais conhecido no Brasil como 'Eu, Christiane F., drogada e prostituída'—lançado em meio aos depoimentos de Christiane sobre o submundo das drogas e prostituição, que virou rapidamente best-seller mundial. Além disso, sua história virou lição de moral em escolas para que nenhum jovem fosse como ela. Apesar de toda grana e fama descoladas com o sucesso do livro, e posteriormente do filme de 1981, o ícone Christiane F. não dava espaço para a humanização de sua pessoa. Pouco importavam seus dilemas pessoais, o que a sociedade queria saber era se ela estava se picando ou não, ou seja, imortalizou-se como mito unidimensional.
Atriz Natja Brunckhorst que interpretou Christiane na cinebiografia e o artista David Bowie. Christiane e a atriz nunca se conheceram, apesar do papel ativo da alemã nos bastidores. Enquanto a David Bowie, Christiane relataria suas impressões sobre ele na sua segunda biografia, 'A vida apesar de tudo' que serão melhor descritas abaixo. Foto: Reprodução
Christiane F. aos 19 anos na época do lançamento do filme. Seu visual ainda hoje dita moda e para mais imagens da escritora nascida em Hamburgo, recomendo a pesquisa do seu nome no Pinterest. Foto: Ilse Ruppert
Christiane F. em frente a um dos fragmentos do extinto muro de Berlim em 2015. Foto: Brad Elterman
Mais de 30 anos depois da construção do mito Christiane F., a alemã concede entrevistas à jornalista Sonja Vukovic no que veio a se transformar na sua segunda biografia, "Eu Christiane, F., a vida apesar de tudo", a fim de desmistificar sua própria história. Li em alguns fóruns de leitura da Alemanha que a escrita não agradou por jogar os eventos da vida de Christiane de forma aleatória e também pela frieza das descrições dos mesmos. No entanto, encontramos em 2013 (ano em que o livro foi lançado na Alemanha) uma Christiane desiludida, solitária e amarga, o que explica sem dúvida o tom seco de sua fala. O fim em aberto de sua primeira biografia deixou um ar de esperança sobre sua recuperação do vício, mas a sua vida não seguiu esse rumo. Isso já se estampa logo no primeiro capítulo do livro sob o título de 'Vida de merda'. Na época de lançamento do segundo livro, Christiane relatou que se arrependeu de ter feito tanto o primeiro livro quanto o filme porque isso encurtou a sua vida. Aprendemos com o mais recente livro que ela sofre de Hepatite C adquirida nos 80 por conta de uma seringa compartilhada, e que está sempre passando mal por conta disso e por conta do longo tempo de vício. Mas também aprendemos que não é somente isso que a deixou doente. Ter sido uma criança abandonada, uma adolescente e adulta cercada por pessoas maliciosas que lhe prometiam o afeto que lhe faltou, mas que queriam de fato sua grana, também afetariam bastante a sua saúde.
Contudo,Christiane alterna entre suas dores e seus momentos de glamour e êxtase, estes mais escassos. Os anos 80 lhe proporcionaram uma ida à Hollywood na época de lançamento do biópico, e moradia em Pasadena, seu lugar favorito do mundo. Ela ainda firmaria uma forte amizade com a artista post-punk alemã, Nina Hagen, e viajaria com David Bowie de avião, pois ambos eram os responsáveis pela produção do filme biográfico. Se a Christiane de 13 anos se refugiava na música de Bowie, a de anos mais tarde o veria como uma figura de estatura baixa, insegura e com uma barba que o remetia ao seu pai. Ela mantém tanto nesta quanto na primeira obra literária, um olhar distante, porém, crítico das pessoas ao seu redor. Isso se acentuaria com o passar do tempo, pois Christiane se tornaria desconfiada de tudo e todos. As apunhaladas pelas costas e a obsessão das pessoas com o estado do seu braço em detrimento ao seu estado mental, a isolariam do mundo e ela encontraria uma companhia fiel nos seus cães.
Para ser mais precisa sobre suas tragédias, em 1996, Christiane teve seu único filho, o que considera o momento mais feliz de sua vida. Passou anos limpa dando o seu máximo como mãe até se envolver com um golpista que quase a faliu e ainda por cima levou Christiane a se encurralar por causa das drogas e assim, perder a guarda de seu filho em 2008. Essa foi com certeza a sua maior dor de todas porque desde então, nunca mais conseguiu a guarda de volta, que passou para outra família, e Christiane só pode visitá-lo de vez em quando. Além do mais, Christiane havia sido mãe solo, pois o pai do garoto os abandonou na época. Mas para cada tragédia anunciada na vida de Christiane F., tinha o sensacionalismo da mídia que a pintava como culpada por ser junkie e com seu relato aprendemos que não é a primeira vez em que vemos mulheres sendo alvos da mídia sexista, que sempre as culpa pelas coisas ruins que lhes ocorrem e nunca investigam o poder do patriarcado por trás. Olhemos a história de Amy Winehouse e seus problemas com as drogas, por exemplo. Quem se atreve a por culpa em Blake Civil por tê-la arrastado em uma espiral descendente?
No caso de Christiane, ela se responsabiliza pelo consumo e já alegou não querer largar o vício porque foi o que restou. Muitos podem ler essa alegação sem saber sua história e a chamar de várias coisas porque as mulheres sempre vão carregar a culpa por cada ato fora do padrão, e é por isso que é muito importante fazer uma releitura humanizada das suas histórias.
"Desde muito pequena, Christiane conviveu constantemente com os cachorros. Sua paixão são as raças exóticas, como este Malmute do Alasca". Descrição retirada do livro. Além de cachorros, Christiane costuma manter na sua casa o mínimo possível, pois tantas mudanças ao longo dos anos a tornou minimalista. Arquivo pessoal de Christiane
"Em 1987, Christiane se instala numa cabana próxima a uma taberna, na ilha de Paros." Descrição retirada do livro que se refere aos 7 anos em que Christiane se relacionou com o amor da sua vida, Panagiotis, que vivia nas praias das ilhas gregas. Foto: Arquivo pessoal de Christiane
Christiane F. encerra sua segunda biografia queixando-se das perseguições que têm sofrido desde que adquiriu muita grana com o sucesso das suas obras passadas. Ela acredita que quem está por trás disso tudo seja sua mãe, já que ela nunca teve acesso ao seu dinheiro e acreditava que Christiane não teria como cuidar de suas finanças por ter sido jovem e junkie. É um fim triste, diferente do ar esperançoso do sucesso de 78. Christiane concedeu algumas entrevistas na época de lançamento de 'A vida apesar de tudo', porém se tornou reclusa em seu apartamento próximo à estação de metrô Hermannplatz, saindo às vezes com seu cão Leon, mas sempre que clicada, o tabloide escreve que ela está de volta ao reduto das drogas. Essa é a vida nada glamorosa de Christiane F: isolamento social (isso num contexto bem antes da pandemia), medo de perseguições, sem filho, doente mental e fisicamente e tendo que lidar com a constante curiosidade alheia sobre suas veias. Construímos o mito Christiane F., mas jamais o humanizamos. Apesar de tudo, Christiane parece sempre ter contado consigo mesma e o que podemos aprender com a mulher longe do mito é que no fim das contas, nós mulheres só temos a nós mesmas para resgatar nossas histórias e cuidar das nossas dores.
Foto mais recente de Christiane F., até então, de 2019, com o músico Petra. Foto: Instagram pessoal
Da mesma série de fotos em frente aos fragmentos do muro de Berlim, Christiane posa com seu amigo, o chow chow Leon e não poderia terminar este post com imagem mais emblemática. Christiane é também um marco, na cultura pop claro, encontra-se em pedaços após várias apunhaladas que jamais foram suficientes por destruí-la por completo.
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