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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Promising Young Woman (2020)

 


Esta crítica contém spoiler e alertas de gatilho.

Há uma série de thrillers de vingança feminina em que a protagonista busca justiça através do sangue. I Spit on Your Grave, de Meir Zarchi, de 1978; Thriller: A Cruel Picture de 1973 de Bo Arne Vibenius e Ms. 45 de Abel Ferrara, de 1981, são alguns dos exemplos em que posso pensar agora, com personagens femininas moldadas sob o olhar masculino e cenas violentas são priorizadas em relação ao desenvolvimento das personagens após experiências traumáticas intensas. Mas eu sou fã de Ferrara e pude ver algum desenvolvimento na protagonista de Zoë Lund enquanto ela retrata facetas vulneráveis, adicionando, assim, mais camadas à sua personagem para além da mulher fodona e armada 24 horas por dia. Além disso, quando os filmes não se concentravam em mulheres caçando seus agressores, tínhamos seus pais fazendo esse trabalho como se o ataque ferisse apenas a sua honra, sem se importar como as reais vítimas impedididas de narrar suas próprias experiências.

No entanto, mudanças culturais vêm ocorrendo na sociedade e na arte graças ao surgimento do movimento #MeToo anos atrás. Produções centradas nas mulheres, como  I May Destroy You, de Michaela Coel, explora a complexidade por trás do consentimento e, de fato, mudamos a forma como abordamos essa discussão. As produções oferecem emoções humanas mais credíveis e uma ruptura com os equívocos sobre o consentimento, substituindo as armas por soluções tangíveis para o problema. O emblemático primeiro longa-metragem de Emerald Fennell,'Promising Young Woman' ou 'Bela Vingança', em Português (aliás que título brasileiro fraco) visa reavaliar filmes sobre estupro e vingança, bem como outros cenários onde o consentimento é banalizado.


A atriz britânica Carey Mulligan como a multifacetada Cassie Thomas em 'Bela Vingança' (2020). Foto: Reprodução

Em 'Promising Young Woman', a atriz e ativista britânica Carey Mulligan interpreta Cassie Thomas: uma ex-estudante de medicina de 30 anos que vive uma vida dupla secreta após seu dia de trabalho como barista. A primeira vez em que a encontramos, ela está vestida como uma executiva e aparentemente muito bêbada em um clube. Três homens comuns a avistam e um deles mostra simpatia e decide levá-la para casa em segurança. Este homem é retratado pelo "cara legal" da famosa série 'The O.C., Um Estranho no Paraíso', Adam Brody. Logo descobrimos que ele é um predador, mas antes que ele tome total controle da situação, uma Mulligan sóbria rompe seu disfarce e o confronta. Ela então deixa a sua casa e é vista caminhando calmamente pelas ruas comendo um lanche com ketchup pingando em suas roupas, e nós deliberadamente acreditamos que era sangue, em uma analogia sarcástica aos  populares filmes de vingança como os de Quentin Tarantino, enquanto a estética bubblegum neon colore os créditos de abertura. Fiquei surpresa ao ver que o filme foi produzido por uma maioria de mulheres, incluindo Margot Robbie, cujo nome foi evocado em comparação com o de Mulligan em uma crítica infame da Variety, afirmando que a última foi mal escolhida já que ela não é uma femme fatale como Robbie, que seria uma isca lógica para os homens. Clichês sexistas como esse são exatamente contra os quais 'Promising Young Woman' luta.


Nenhum tipo de corpo ou roupa da mulher determina seu consentimento. O fingir-se de bêbada de Cassie não é um convite. Ele mostra como a cultura do estupro é banalizada pela sociedade. Foto: Reprodução

Cassie registra traços no seu caderno contando cada homem alvo  eventualmente, veremos que eles serão estendidos a pessoas confrontadas de outras maneirase esse seu comportamento obsessivo também pode ser percebido na sua resistência de seguir em frente após um passado traumático.  Ela era uma jovem promissora como sua melhor amiga Nina. Ambas eram excelentes estudantes de medicina, mas quando Nina foi estuprada por seus colegas de classe, suas vidas mudaram completamente. As únicas vezes em que vemos Nina são quando  as fotos de infância das meninas que ficam no quarto infantil e no papel de parede do laptop de Cassie são mostradas. A razão pela qual Cassie parece presa no tempo é porque ela nunca pode lidar com o suicídio subsequente de sua melhor amiga e como o ataque foi varrido para debaixo do tapete uma vez que poderia ter prejudicado os jovens promissores da faculdade.

É quando Cassie esbarra com outro ‘cara legal’, não em uma boate, mas em seu trabalho diurno, que a trama muda de direção. Ryan (Bo Burnham), um cirurgião pediátrico que foi seu ex-colega de classe na faculdade de medicina, é divertido e respeitoso. Acreditamos que ele é diferente dos outros "caras legais" e a diretora escolheu de forma inteligente atores conhecidos por seus papéis charmosos e queridinhos anteriores, como Adam Brody citado acima, Bo Burnham em Eighth Grade e Christopher Mintz-Plasse em Superbad (cujo personagem no filme de 2020 insiste: “mas eu sou um cara legal” em seu encontro com Cassie). A intenção de Fennell era mostrar que esses são caras que você não classificaria como predadores ou cúmplices, e essa abordagem é essencial para reavaliar muitas séries e filmes que amamos e eventos da vida real, é claro mas que deixamos de notar cenas não consensuais como em (Último Tango em ParisNove Semanas e Meia de Amor, Instinto Selvagem e etc.) protagonizados pelos tradicionais galãs de Hollywood e a mesma categoria acompanha o #MeToo que agora abraça uma masculinidade que não é tóxica. Ainda assim, filmes como 'Bela Vingança' mostram que redefinir a cultura e desafiar o machismo de longa data leva tempo e as mulheres devem sempre cuidar de si mesmas.


A partir da esquerda: Carey Mulligan, a diretora Emerald Fennell e Laverne Cox no set de Promising Young Woman. Foto: Reprodução

Outra forma que o filme de estreia de Emerald se alinha aos nossos tempos recentes é normalizando elenco de atores trans. Laverne Cox é uma atriz trans pioneira que interpreta Gail, a colega de trabalho de Cassie em uma cafeteria. O relacionamento positivo das duas refigura a evolução da amizade feminina nas telas, que se tornou muito mais complexa e inclusiva. Mesmo assim, a Universal Pictures permitiu que a personagem de Laverne fosse dublada por homens em diferentes versões do filme. Embora o estúdio de cinema tenha se desculpado com ela e com a comunidade trans, isso foi ridiculamente transfóbico e só mostra o quanto a indústria do cinema ainda precisa dar passos significativos para a inclusão LGBTQIA+.

O relacionamento romântico de Cassie com Ryan a afasta de suas caças até que ela descobre que ele ainda mantém contato com os colegas da faculdade de medicina que abusaram de Nina. Ela não aborda o evento até se reconectar com Madison, outra ex-colega, interpretada por Alison Brie. Mulheres e homens foram cúmplices da agressão, descartando-a como uma situação contestadora, e Madison faz parte dessa narrativa até ser confrontada por Cassie, que a coloca em uma situação desconfortável que chegaria próximo demais do maior medo de qualquer mulher. A protagonista usa a mesma tática com a reitora da faculdade (Connie Britton) e entendemos até que ponto se chega para que se desconstrua uma cultura de culpabilização das vítimas. A compreensão de Madison a levou a entregar a Cassie um telefone antigo contendo um vídeo horrível do que houve com Nina e ela descobre que Ryan era um espectador naquela noite. Isso é o suficiente para o ato final de Cassie, que consiste em um confronto determinante com o estuprador de Nina, Al Monroe (Christopher Lowell).


O papel de Carey Mulligan em Bela Vingança é definitivamente o mais provocativo e notável de sua carreira. Foto: Reprodução


Vestida como uma 'enfermeira sexy' e seguida por um cover instrumental que desperta arrepios de Toxic de Britney Spears  que dialoga totalmente com as referências pop do filme e a mensagem sobre consentimento, já que as vidas de estrelas pop como Britney finalmente têm sido reexaminadas após décadas de assédio constantes do qual fazíamos parte  Cassie está disfarçada de stripper contratada para a despedida de solteiro de Al Monroe.

Outra alegoria da cultura pop que vemos no filme é como os looks da protagonista refletem suas complexas personas em diferentes momentos. A Insider a comparou a duas figuras contrastantes: a ícone dos anos 60, Brigitte Bardot e o Coringa de Joaquin Phoenix. Justapus a foto de Bardot em Le Mépris e Carey em Bela Vingança, onde ambas as alegorias são perceptíveis.


O clichê das trabalhadoras do sexo descartadas também é abordado no filme. Quando Cassie nocauteia os outros homens na festa com uma bebida fortificada, ela amarra Al Monroe a uma cama e começa a provocá-lo, lembrando-o de Nina e avisa que ela possui o vídeo que destruiria sua reputação. Mas enquanto ela tenta gravar o nome de Nina em seu peito com um bisturi, para que ele nunca se esqueça do que fez, ele se solta e a sufoca até a morte. Na manhã seguinte, o melhor amigo de Al, Joe (Max Greenfield) encontra os dois na cama e vendo que seu amigo matou Cassie, ele fica ao lado de Al e ajuda a queimar o corpo protagonista. Antes do incidente da outra noite, Al Monroe dizia que era um homem leal e era apenas um garoto quando tudo aconteceu. Ryan também alegou várias desculpas pelo seu passado  e, no fim do dia, não apenas os homens têm dificuldade em assumir responsabilidades pelos seus abusos, mas também encobrem seus amigos e é por isso que grande parte da cultura da masculinidade tóxica ainda atrapalha medidas tangíveis para acabar com a cultura do estupro.

Embora o final de 'Promising Young Woman' tenha dividido opiniões, ele expôs uma dura verdade sobre o quão pouco a sociedade evoluiu na proteção das mulheres e na condenação dos homens. Foram necessárias 80 mulheres para derrubar Harvey Weinstein e foi necessária a morte de uma mulher que lutou sozinha pela validação do estupro de sua melhor amiga. Eu não consegui visualizar um final doce para um filme que mostrou ser tão revolucionário desde seu início. As cinzas de Cassie reverberarão por muito mais tempo, enquanto o filme abre um novo caminho para os thrillers de vingança feminina, e quem sabe, para o modo como a sociedade trata a cultura do estupro. 


Este artigo foi originalmente publicado no meu medium em Inglês.

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