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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Maid (2021)

 

Foto promocional da minissérie Maid. Fonte: Netflix

AVISOS: a crítica contém spoilers; a minissérie retrata violência doméstica.

Maid é uma minissérie da Netflix, criada por Molly Smith Metzler, e baseada na história real de Stephanie Land narrada na memória Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother's Will to Survive. A obra do streaming acompanha a jornada de Alex (Margaret Qualley) saindo de um relacionamento abusivo e lutando por uma vida melhor para ela e sua filha de dois anos, Maddy (Rylea Nevaeh Whittet). Logo no início nos deparamos com o tipo de abuso cometido pelo pai de Maddy, Sean (Nick Robinson). O abuso psicológico ainda é minimizado quando se trata de violência doméstica. Quando Alex sai de casa e é encaminhada até o serviço social, ela recusa admitir que é vítima de violência, uma vez que a mensagem "Mas ele nunca me bateu" nos é internalizada como justificativa para desculpar agressões não-corporais, as quais não exergamos como agressão. Sean grita e aponta o dedo na cara de Alex, quebrando garrafas muito próximo à mãe e filha— deixando estilhaços no cabelo da garota—  e usa seu problema com alcoolismo como desculpa. Alex também era dependente financeiramente dele, saindo com menos de vinte doláres de casa com a criança no meio da noite. É importante que Sean seja referido como pai de Maddy e não como parceiro/companheiro de Alex, porque só o primeiro é um título permanente, e também faz com que retiremos a camada da romantização da relação. Há uma cena em que a protagonista lembra de como ele a tratava no início da relação e isso é muito importante para entender como o abuso vai se instalando. Primeiro o princípe, depois o monstro. É por isso que muitas mulheres sentem como se tivessem feito algo errado para o cara mudar de comportamento. E é fácil se apegar ao que 'existiu' desejando que isso volte. Falo isso por experiência própria, e por isso achei que deveria escrever sobre a minissérie. Eu também estive presa em um relacionamento abusivo por anos com alguém que me ameaçava constantemente, me fazendo cada vez mais me afundar em um poço, esquecendo de quem eu era—você deve se lembrar agora daquela cena do poço da série. Cada vez que eles tiram um pedaço da gente, mais a gente afunda e esquece de quem a gente é e de nossos valores, funcionando através dos mecanismos do abusador. 

O primeiro passo que a protagonista dá é buscar sua autonomia financeira, e o fato disso ser o foco de Maid é que ele consiste em um dos fatores principais para que mulheres não consigam sair de relações abusivas. A entrega de Margaret no seu papel é tanta que sua expressão facial grita "eu topo qualquer coisa para não voltar para aquele lugar". Vemos que muito da resiliência de Alex é construída por meio das enormes falhas do sistema Estadunidense em acolher mães solos, vítimas de abuso e pessoas desempregadas vivendo na extrema pobreza. Isso é evidente principalmente quando os cálculos dos gastos de Alex aparecem na tela. Ela acaba trabalhando para a companhia Value Maids, onde faxina mansões por um salário que mal dá para cobrir um alugel e necessidades básicas, e os lugares  escondem algo de muito humano que Alex vai descobrindo aos poucos e joga suas observações em seu caderno. A jovem tinha o sonho de  estudar escrita criativa e teve que pausá-lo porque havia descoberto a gravidez na época. Quando ela conta a Sean, ele reage negativamente, recusando a paternidade, o que é um cenário muito comum. Muitas vezes o pai abandona a mãe sozinha, ou quando assume, usa a criança para manter a mãe dependente, o que ocorreu com Alex.  Ela mora temporariamente em um abrigo para vítimas de violência doméstica comandado por Denise (BJ Harrison) que também foi vítima. Acredito que sua personagem foi essencial para que vítimas de violência que estivessem assistindo à minissérie se sentissem acolhidas. Ela representa como gostaríamos que a sociedade nos tratassem nesses momentos de extrema vulnerabilidade e envia a mensagem de que o mundo precisa de mais Denises que nos compreendam e nos forneçam o meio para nos recompor. É o toque humanizado que carece nos atendimentos burrocráticos.

 No mesmo abrigo Alex conhece  Danielle (Aimee Carrero) que também tem uma criança. É ela que levanta Alex do chão quando se sentiu sem forças para lutar pela guarda da filha, e ela só teria uma semana para provar a corte que teria condições de manter Maddy. E aqui fica a questão: como provar o abuso psicológico se você não tem marcas corporais? A palavra de Alex não seria suficiente? Quando Alex reencontra amigos em comum com Sean, uma delas conta que ouviu o lado dele da história. Isso mostra o quanto a palavra do abusador se sobressai, ainda mais em casos de abuso psicológico e quando a pessoa em questão tem amizades com mulheres, uma vez que elas alegam que ele nunca fez nada com ela, então não tem como condená-lo. Acredito que o que faltou na série foi Sean ser responsabilizado pelo abuso e um esclarecimento sobre o fato de que álcool ou nada pode ser desculpa para violência. De qualquer forma, Maid fez muito pelo assunto. 
Danielle é o laço de sororidade pois esteve lá e sabe como é, e muitas vítimas acabam se unindo porque falta empatia de outras pessoas que nunca passaram por esse trauma. A personagem acaba deixando o abrigo e retornando ao abusador após receber ligações constantes, o que certamente indica chantagem emocional, e isso não é porque "mulher volta porque gosta/busca sofrer" ou outros dizeres mais pesados que ouvimos tanto por aí, e sim porque é difícil romper o ciclo abusivo, ainda mais quando se há filhos. 

Jamais podemos subestimar a violência de um alguém abusivo mesmo quando não somos o alvo. Maid aborda de maneira sensível as camadas graduais do abuso para que entendamos porque as vítimas demoram a sair ou nunca saem da relação. Foto: Netflix 

Fora do abrigo, Alex e Maddy são acolhidas por um conhecido que guardava uma queda por ela.  Nate (Raymond Ablack), um cara bem-sucedido, bom pai, equilibrado e charmoso, ou seja, o cara 'ideal', oferece seu carro e sua casa para elas, as cercando em suas propriedades. Porém, ao demonstrar suas reais intenções ao abrigá-las, Alex o rejeita porque segundo ela, eles não são iguais. Apesar de se sentir atraída sexualmente por Nate, ele esperava que todo o apoio fosse pago, e a expulsa de sua casa mesmo sabendo que ela não tinha para onde ir porque ela dormiu com Sean. Em outras palavras, ele não ligava realmente em ajudá-la e sim em controlá-la, já que ela se encontrava em situação vulnerável. Alex agiu errado ao deixar Maddy com ele e não ter avisado onde estava, mas isso não justificaria o despejo. Muitos fãs de Maid torceram para eles ficarem juntos e não entenderam como ela não quis o 'partidão'. Foi muito importante ter um personagem como Nate para mostrar que homens controladores podem agir de formas tão sutis que muitas vezes não vemos. Já vimos muitos Nates em séries, livros e filmes e sonhavámos com o seu tipo. Agora sabemos que ele precisa ser desconstruído. Tanto Nate quanto Sean tentaram controlar Alex por causa de sua vulnerabilidade, mas ela se sobressai e se torna autossuficiente, e peço para que imaginem como teria sido a vida dela se tivesse ficado com Nate. 


Alex tenta contatar a sua mãe, Paula (Andie MacDowell), artista que vive em um trailer com seu namorado com quem a protagonista não mantém uma boa relação. A primeira impressão que podemos ter de Paula é que ela é uma hippie que estacionou nos anos 60 e se recusa a lidar com a realidade atual, especialmente com os problemas de Alex, os quais ela parece não dar ouvidos. O que garante à série sua alta repercurssão positiva é sem dúvidas o exemplar desenvolvimento dos personagens, que ganham suas próprias nuances, fugindo do cliché "história de fundo", artifício este bastante utilizado em séries quando um personagem não ganha sua própria história e existe apenas de fundo para a trama do protagonista se desenrolar. No caso de Paula, poderíamos tê-la como o exato oposto de Alex. Enquanto Alex é pé no chão e vive por sua filha, sua mãe vive no mundo da lua e não escuta a filha. Porém, há uma virada na narrativa de Maid que nos permite entender melhor a relação atual entre as duas. Quando a protagonista tem que limpar a casa de um serial killer desaparecido, ela ouve gritos de socorro parecidos com o da sua mãe vindos do andar onde se encontra um porão, onde o serial killer era preso quando criança como castigo da mãe e no qual Alex é trancada acidentalmente, e como um gatilho, tem uma visão de quando era criança e se trancava no armário da cozinha da sua casa. Alex sofre um ataque de pânico ao sair, o que confere mais um toque de realidade à trama, uma vez que raramente vemos personagens exibirem sinais de trauma emocional ao passarem por situações extremas. Alex acaba descobrindo que seu pai, Hank (Billy Burke), com quem não tem uma boa relação, batia na sua mãe. Ao confrontá-la, esta diz que não era uma vítima, mas Paula se encontrava numa outra relação abusiva com um impostor que tomou a hipoteca da casa herdada pela mãe dela para si. Ela sofre um colapso nervoso ao perceber que perdeu a única coisa que tinha poder sobre que era a casa. Nesse ponto, Alex paralisa ao se dar conta de quanta responsabilidade assumia. Isso nos mostra que mesmo diante de tantos problemas, Alex é humana o suficiente para não deixar outras pessoas de mão. No entanto, aqui cabe mais uma questão: quem cuida da mãe quando ela cuida dos outros? Quando Alex desaba, Sean se utiliza dessa brecha para retomar seu controle sobre ela. 

Andie MacDowell, figura clássica de romances dos anos 80 e 90, entrega uma performance visceral. Sua personagem é diagnosticada com transtorno bipolar, e apesar da mãe de Stephanie Land não ter a mesma condição, é importante que doenças psiquiátricas sejam abordadas com mais frequência em obras da forma em que foi em Maid, a fim de romper com estigmas sociais. Apesar da personagem se opor ao tratamento, sua fase eufórica da doença é a que mais vemos na obra e conhecer a personagem na sua maior vulnerabilidade com certeza muda nosso olhar. Ela tomou a decisão certa ao fugir com Alex do lar abusivo, e a conexão entre as duas mostra que abuso não é um problema só de agora e que Paula é mais forte do que poderíamos ter pensado dela se não houvesse espaço para a sua história. 

As atrizes Margaret Qualley e Andie MacDowell são mãe e filha na vida real, o que confere uma carga emocional intensa  nesses tempos de pandemia  em que nossas conexões pessoais foram totalmente abaladas. Foto: Netflix


Outro ponto pelo qual a série merece o reconhecimento que tem tido é o fato de que, segundo o Datafolha, uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de violência na pandemia no Brasil.  Muitas mães regressaram às suas casas na pandemia e ficaram mais vulneráveis a abusos. As reações à série de muitas mulheres nas redes sociais confirmam que ela é um gatilho e que muitas ou não conseguem assisti-la ou estão o fazendo aos poucos. Não tem como não sair diferente após terminar os dez episódios de Maid. Ela é necessária para todos nós não só porque toca em pontos que precisam ser revistos com urgência na nossa sociedade, mas porque o faz da maneira mais real possível sem maquiagens e romantização. Não acredito que Maid precise de uma segunda temporada pois quando vemos no fim Alex e Maddy partindo para uma nova trajetória saudável e promissora, é a luz do fim do túnel que muitas vítimas de violência precisam para elas mesmas sentirem que podem seguir em frente. O fim também nos faz desejar que tudo fique bem para mãe e filha e nos incita a ter a mesma empatia com as vítimas ao nosso redor. 



Toda solidariedade a mães solos que foram/são ou não, vítimas de violência doméstica. Vocês merecem subir ao topo de uma montanha e clamar um novo mundo para vocês. Foto: Netflix 


Uma versão em Inglês do artigo pode ser encontrada aqui

Além do número de telefone 180, é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), responsável pelo serviço. No site está disponível o atendimento por chat e com acessibilidade para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Também é possível receber atendimento pelo Telegram. Basta acessar o aplicativo, digitar na busca “DireitosHumanosBrasil” e mandar mensagem para a equipe da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180. 

Fonte:https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/denuncie-violencia-contra-a-mulher/violencia-contra-a-mulher

Comentários

  1. Que resenha sensível e inteligente! Você me fez ver algumas situações na série, comportamentos que eu não tinha percebido! E o seu relato deixou sua escrita ainda mais poderosa, porque assim como você, eu também me identifiquei com a série por ter sofrido violência psicológica e física.
    Parabéns pelo lindo trabalho!

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    1. O que me levou a assistir a série foi justamente saber que eu me encontraria ali. Talvez eu estivesse buscando identificação e compreensão que pouco encontro aqui fora. A série dá uma abertura incrível a nossa versão. Ela é muito necessária. Obrigada de verdade pelo apoio♥. Continuemos na nossa luta por aqui!

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