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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Como o álbum Daddy's Home de St.Vincent me tornou sua fã

 

Capa do álbum Daddy's Home de St. Vincent. Foto: Loma Vista


Antes de 2021, eu não era fã de St. Vincent. Eu costumava sempre assistir à performance dela no 4AD Sessions para a música Surgeon e até pensei que a música se encaixava perfeitamente na minha vida. No entanto, eu não conseguia passar disso e não entendia por quê, já que era uma grande fã de artistas que certamente a influenciaram, como David Bowie, Björk e Nine Inch Nails. Eu andava ouvindo muitas músicas dos anos 70 de mulheres como Betty Davis, Marianne Faithfull e Donna Summer (apresento um programa de webrádio em que exibi edições especiais sobre elas) e, por meio de minha pesquisa, fui levada ao álbum recente de St. Vincent, Daddy's Homeobrigada, algoritmos!

Assisti pela primeira vez ao videoclipe da faixa Down e além de ser fã da música dos anos 70, também sou fã das pérolas feministas do cinema vérité dos anos 70. Parecia que estava assistindo a um filme de Barbara Loden. Fiquei cativada pela letra também. Especialmente pela seguinte parte:

Go get your own shit, get off of my tit
Go face your demons, check into treatment
Go flee the country, go blame your daddy
Just get far away from me

Vá se recompor, saia da minha teta

Vá encarar os seus demônios, entre para a reabilitação

Vá fugir do país, vá culpar seu pai

Só fique longe de mim

Eu fiquei tipo "Caramba Annie Clark [nome verdadeiro de St. Vincent], você realmente me entende!" e foi assim que a música dela começou a crescer em mim. Eu passei por um período ruim com uma pessoa péssima e era exatamente isso que eu queria dizer a ela na hora em que a cortei minha vida. Agora, toda vez que ouço essa música, sinto que estou no topo da situação repetidamente e isso é tão bom. Além disso, a música é groovy, o álbum tem muito de Sly and the Family Stone,  e faz você dançar como em um show do Soul Train, e os tempos não têm sido mais nostálgicos já que ainda estamos nos isolando e sentindo falta de coisas dos velhos tempos.

'Pay Your Way in Pain' abre o álbum e narra uma série de eventos na vida de uma mulher deprimida que não atende às expectativas da sociedade. Além de falida, ela é rejeitada tanto porque não é mãe, como também pela namorada. O caminho é de dor, vergonha e solidão e St. Vincent uiva "I wanna be loved" (Eu quero ser amada) da forma mais catártica possível. Ela constrói uma personagema imperfeita porque, assim como ela, precisamos dessa garantia das emoções individuais. Na faixa The Laughing Man, Annie cita as heroínas de Cassevetes, em particular, Woman Under the Influence (1974), de Gena Rowland, que vivencia as influências e pressões exercidas pela sociedade e à medida que os tempos se tornam mais incertos, somos pegos pensando se iremos atender à essas expectativas. Como não se identificar com a música?

Mencionei no início do artigo que St. Vincent é inspirada em David Bowie e em Daddy's Home,  notamos totalmente sua fase Young Americans, especialmente nas performances de St. Vincent, como no vídeo Pay Your Way in Pain, e pelo muito usado som de cítara. Sentimos muita falta de David Bowie e St. Vincent continua seu legado sem se perder. As letras de Daddy's Home são autobiográficas, começando pelo título do álbum, que se refere ao seu pai saindo da prisão após quase uma década. Ela construiu uma persona para contar sua história e quando descobri que ela fez isso em seus dois álbuns anteriores, fiquei intrigada. De acordo com a própria: "São todas eu, são todas diferentes partes da minha personalidade." Além disso, Annie Clark se identifica como gênero fluído, então incorporar a cultura dos anos 70 em sua música possibilita um amplo território para expressão pessoal. Para mim, a música sempre foi uma experiência libertadora, e com Daddy's Home isso não seria diferente.


Prints do vídeo Pay Your Way in Pain. 


Quanto mais eu assistia ao vídeo, mais referências da cultura pop vinham à minha mente, como os movimentos de Madonna em sua era disco e Mia Wallace em Pulp Fiction. Podem não ser referências de Annie, mas um sinal que indica que uma obra se tornará notável para mim é quando me leva a outras que são igualmente incríveis.


A partir da esquerda: Madonna durante a turnê Confessions, Uma Thurman como Mia Wallace em Pulp Fiction e David Bowie gravando o álbum Young Americans. Fotos: KMazur, Miramax e Ellen Graham, respectivamente.


Quando ouvi a última faixa do álbum, Candy Darling, fiquei tão surpresa ao ver que uma das minhas ícones pop favoritas ainda é amada. Eu descobri sobre a atriz trans quando a vi no filme Flesh (1968), de Paul Morrissey, e nas baladas transgressoras de Lou Reed, Candy Says e Walk on the Wild Side. Candy viveu apenas 29 anos, mas abriu caminho para mulheres trans na cultura popular. Assim como St. Vicent, também sou fascinada por sua história, por como ela lutou pelo amor e pela fama depois de uma vida de abusos e lutou também pelas suas identidades. Em Candy Darling, Annie canta “So, Candy Darling, I brought bodega roses for your feet”/ "Então, Candy Darling, trouxe rosas da bodega para seus pés" referindo-se à icônica sessão de fotos de Candy em seu leito de morte, em que ela está rodeada de rosas, e ela morreu infeliz por não ser reconhecida como queria; então, o tributo de Annie é profundamente comovente. Mas ela não está apenas se lembrando de Darling por sua morte. Sua persona é totalmente inspirada nos looks de Candy. Pessoas trans foram pioneiras em desafiar as normas de gênero, abrindo caminho para a rebeldia dos anos 70, por isso é importante que sua contribuição se manifeste em Daddy's Home. 

Da esquerda para a direita: Candy Darling (fotos 1 e 2) e St. Vicent. Fotos: Peter Beard, Peter Hujar e Zackery Michael, respectivamente.

Esta foto de Candy Darling e a da capa do álbum Nilsson Schmilsson de Harry Nilsson definitivamente inspiraram a estética da capa de Daddy's Home. Fotos: Fred W. McDarrah e Legacy Recordings, respectivamente.

Outra forma de St. Vincent homenagear as mulheres pioneiras em seu álbum é na faixa 'The Melting of the Sun', que é provavelmente a minha favorita. Como falei no início do texto, tenho de um programa de rádio que se chama Cidade das Mulheres em que abordo os trabalhos das mulheres nas Artes e também toco músicas feitas por elas. Também dedico meu blog do Medium para falar sobre mulheres e isso tem sido meu foco há anos. Quando ouvi as citadas em The Melting of the Sun, fiquei fascinada com a explicação de St. Vicent:

["The Melting Of The Sun" é] um agradecimento a essas mulheres que surgiram e muitas vezes foram recebidas com hostilidade e que—muitos anos depois— tornaram minha vida mais fácil como mulher. É um agradecimento e também um 'Espero não ter decepcionado o seu legado de alguma forma'. E não estou me colocando em seu escalão, estou apenas dizendo que espero que tudo o que fiz, torne as coisas mais fáceis para a próxima geração. E espero não ter afrouxado nesse aspecto. Porque eu só quero fazer um ótimo trabalho. Bata na madeira, minha vida é simples assim no momento: simplesmente é.
É uma visão incrível de mulheres como Marilyn Monroe, Joni Micthell, Tori Amos e Nina Simone e suas  histórias que derreteram o sol, ou seja, subverteram a ordem das coisas e não há volta. É um manifesto poético que vai ecoar como outra canção que também cita vários nomes, Hot Topic do Le Tigre. A canção de St. Vincent é acompanhada pelas cantoras negras Lynne Fiddmont e Kenya Hathaway, que adicionam intensidade a ela. É a irmandade da segunda onda sintonizada com nossos tempos.

O desenho animado Schoolhouse Rock inspirou o visual do vídeo. Da esquerda para a direita: Joni Mitchell, Tori Amos e Nina Simone.


Depois de viajar no tempo em Daddy's Home, percebi que fui capturada pela máquina do tempo glamorosa de St. Vincent, e visitar seus trabalhos anteriores me fez ver como ela é uma artista brilhante. 2021 foi um ano difícil para mim, especialmente por causa do sentimento de tentar descobrir para onde vamos a partir daqui, e escrever e falar sobre mulheres na música de tempos passados e recentes realmente me motivou a seguir em frente, então um álbum como Daddy's Home parecia estar lá apenas para mim. Eu abracei ele e a música de Annie e eu quero nunca mais deixá-los ir.

Minha edição especial do programa de rádio sobre St. Vincent pode ser ouvida aqui.

Uma versão em Inglês deste artigo pode ser encontrada aqui.




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