Minha foto
Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Betty Davis: Vendo a Rainha do Funk através de lentes diferentes

Capa do documentário 'Betty — They Say I’m Different’ (2017)', dirigido por Philip cox.
Foto: Reprodução

Lembro-me de quando encontrei a música de Betty Davis. Eu tinha 19 anos e estava no segundo ano da minha graduação. Fiquei tão fascinada com seu estilo ousado que incluía botas de cano alto prateadas, vestidos babydoll, meias arrastão, calças de couro combinando com blusas transparentes sem sutiã e collants ao estilo glam rock; e quando Betty escreveu a música "Don't Call Her No Tramp", ela estava à frente de seu tempo, e também pertencia ao seu próprio tempo, alegando que roupas não definiam o valor de uma mulher. Os anos 70 foram tempos avançados nos direitos das mulheres e elas estavam organizando suas próprias formas de revolução sexual, mas a questão é quem estava pronto para aceitar a revolução sexual de uma mulher negra, e Betty definiu seus próprios termos. Suas músicas me atraíam não apenas porque eram essencialmente feministas, embora Betty nunca se identificasse como tal, mas também porque tudo o mais em torno de sua música era legal: sua banda (The Pointer Sisters, os caras da Funkhouse e outros músicos notáveis); suas capas icônicas de discos que ajudaram a construir sua imagem como uma deusa do funk e o fato de que, em determinado momento de sua carreira, ela produziu e organizou seus próprios álbuns, um marco para as mulheres negras na música— ela começou sua experiência na música trabalhando como DJ e anfitriã em um clube chamado The Cellar, em NY, e escreveria Uptown (to Harlem) para os Chambers Brothers, um grande sucesso e que foi essencial para ela encontrar seu lugar na música. 


Em 2017, o cineasta britânico Philip Cox, teve a oportunidade de ouro de filmar um documentário sobre a carreira de Betty e também tê-la nele. Digo que é uma oportunidade de ouro porque, desde o final dos anos 70, Betty ficou reclusa por mais de duas décadas e também porque infelizmente faleceu em 9 de fevereiro de 2022, aos 77 anos. O documentário é um retrato relevante  de uma artista que foi coroada a Rainha do Funk depois de uma batalha árdua que custou sua saúde mental. 

As meias arrastão e babydolls se tornariam muito populares na estética  grunge, Kinderwhore, nos anos 90, usadas por mulheres como Courtney Love. Não é por acaso que anos depois ela se uniu à varejista Nasty Gal em uma coleção inspirada nessa estética. Nasty Gal vem de uma música de Betty Davis.


Membros da Funk House de Betty aparecem em uma cena comovente do documentário, onde eles ligam para ela para uma jam depois de um longo tempo, à qual Betty infelizmente diz não. Foto: Betty —'They say I'm different' (2017)


Eu tinha que apresentar um projeto sobre qualquer tema de minha preferência para uma das minhas aulas de inglês no segundo período e escolhi falar sobre 4 estrelas do rock que ajudaram a moldar as mulheres modernas. Falei sobre Joan Jett, Patti Smith e decidi incluir Betty Davis. Não só acho que Betty levou o funk a outro nível, mas também o rock'n'roll. Ela desafiou as expectativas para as mulheres negras na música. Rugindo, rosnando acompanhada de um baixo pesado e pedaleira wah wah, dizendo linhas como "Eu disse que estou mexendo na minha buceta", e em suas performances, Betty simulava prazer sexual com suas expressões corporais e seu microfone. Além disso, sua música não era puramente funk. Também era rock and blues porque rock'n'roll também é sobre misturar gêneros. Mas sim, Betty Davis é, sem dúvida, a Rainha do Funk. Ela foi inspirada por Bessie Smith e seu amigo próximo, a lenda Jimi Hendrix (suas influências são homenageadas em músicas icônicas como F.U.N.K e They Say I'm Different). Ela o conheceu através de sua amiga e então namorada de Jimi, Devon Wilson. Betty escreveria a música "Stepping in her I. Miller Shoes" para ela em seu primeiro álbum auto-intitulado de 1973, lançado dois anos após o suicídio de Devon, que teve a ver com o sofrimento pela morte de Jimi. Betty escreve um tributo sensibilizado e o título evoca tanto o senso de moda de Devon, e Betty adorava isso nas pessoas, bem como a tentativa de Betty de se colocar no lugar de sua amiga para contar sua história e que ela era mais do que o mundo a tinha como: uma groupie. Então Betty era praticamente uma estrela do rock feminista não apenas quando cantava sobre seu prazer, mas também quando cantava sobre irmandade entre mulheres negras. Em They Say I'm Different, de Cox, temos acesso a um raro vídeo curto de Betty performando a música. Ela está usando seu famoso sutiã e shorts de lantejoulas, que também podem ser vistos nas poucas fotos online de suas performances. Foi uma experiência tão emocionante finalmente ver ela em ação. Eu sonhei com esse momento por anos. Embora seja apenas um clipe curto, ele confirma que sua persona 'nasty gal' nos palcos impacta qualquer pessoa em questão de segundos. Existe uma série animada muito legal chamada Mike Judge Presents: Tales from the Tour Bus que também contou a história de Betty, e mostra algumas das entrevistas que também aparecem em comprimentos mais curtos no documentário, mas eu senti que a série, que é mais curta que o documentário, este tendo 53 minutos de duração, deixou de fora muitas das histórias interessantes sobre Betty. Por exemplo, havia um cara que ficou tão impressionado com a presença de palco de Betty que literalmente caiu para trás.

O documentário é relevante porque apresenta a própria Betty em uma rara aparição depois de mais de 30 anos, mas seu uso constante de simbolismo animal e da natureza para expressar a ascensão e queda de Betty não atrai um novo público que não está familiarizado com sua história. O documentário é íntimo a ponto de ter sido feito para quem estava ansioso(a) para vê-la depois de tanto tempo e pode ser decepcionante, a princípio, ver que ela não queria ser totalmente filmada e que só depois algum tempo, percebemos que não é a voz dela que narra o filme. No entanto, se Betty queria ser compreendida naquela época quando fez o que fez, por que não poderíamos respeitá-la agora quando ela não queria ser vista? O auge do documentário é quando ela está olhando para a câmera quando a narradora fala da morte de seu pai. Seu olhar assustado é bem diferente daquele desafiador de seus tempos áureos, e um olhar foi suficiente para entendermos que sua dor realmente pesou sobre ela para o resto de sua vida. Ambos os trabalhos apresentam a mesma entrevista com a modelo e amiga de Betty, Winona Williams  ambas foram parte da agência de modelos Wilhelmina mas é só na série animada que ficamos sabendo que após a morte do pai, Betty ficou muito deprimida e passou por uma série de delicados episódios como quando jogou seus pertences na piscina e pensava que estava sendo perseguida. Nós realmente não sabemos se Betty foi diagnosticada com uma doença mental, mas isso quebra o estigma de que as mulheres negras devem lidar com tudo, uma vez que ninguém está lá para cuidar delas. Betty se encontrou sozinha.

Versão animada de Betty Davis sugerindo que Miles Davis nomeasse seu álbum de jazz fusion 'Bitches Brew'. O nome dela não pode ser uma nota de rodapé no gênero musical inovador ou na carreira de Miles na época. Ela é mais que uma musa. Ela foi uma mulher negra com poder suficiente para mudar o rumo da história da música. Foto: Canal de YouTube The Fanatic / Mike Judge Presents: Tales from the Tour Bus




Enquanto a série animada reforça a imagem mística de Betty através das aventuras do seu auge, o documentário usa as próprias alegorias místicas de Betty para contar sua história, embora fiquemos com pouca objetividade do que aconteceu com ela, e se ela não queria que saiba disso, é nosso trabalho entender isso e parar de procurar respostas. O que nos resta explorar é sua música e seu significado cultural, com tudo o que isso implica. Foto: Betty - 'They say I'm different' (2017)

Diz-se que a maioria das canções sexuais de Betty são sobre seu ex-marido, o falecido músico de jazz Miles Davis. Bem, ela não sabia quem ele era quando se conheceram, ele já era considerado uma lenda na época em que estavam juntos, e quando ela era considerada uma groupie por dormir com ele, isso mostra como o poder de uma mulher é algo que ela tem que trabalhar duro para provar aos outros, e enquanto Betty desempenhou um grande papel na era do jazz fusion de Miles e o apresentou a Jimi Hendrix e Sly Stone e a roupas vibrantes da época, Miles a colocou na capa de Filles de Kilimanjaro, e dedicou duas de suas canções a ela. Em 2016, a gravadora Light In The Attic lançou 'The Columbia Years 1968–1969', o álbum arquivado de Betty que foi produzido por Miles e apresenta a banda de Jimi Hendrix nos instrumentos. Apesar de ser um excelente álbum com minha favorita 'Down Home Girl', você pode ouvir a voz de Miles no final de um dos takes dizendo a ela como cantar uma música. Seria apenas em sua carreira solo que ela encontraria sua verdadeira direção. O casamento não durou muito e apesar de Betty manter seu sobrenome, seu nome verdadeiro é Betty Gray Mabry, Miles espalharia o boato de que eles terminaram porque ela o traiu com Hendrix e que ele não era fácil de ser controlado. Ele escreveu sobre isso em sua famosa autobiografia e, para muitos, Betty era mais conhecida como a ex-esposa selvagem de Miles e uma traíra do que por sua música e sua contribuição para a dele. Em uma rara entrevista de 2007, Betty disse que tinha  raiva de Miles por espalhar o boato e que eles realmente se separaram por causa de seu temperamento violento.

No documentário de Cox, ela diz que não contou a ninguém sobre sua atitude violenta na época e na série, Winona conta que as pessoas diziam que Betty teve um colapso no final dos anos 70 porque ela não aceitava não ser mais esposa dele. Ambos os trabalhos são realmente necessários para acabar com a ideia de que Betty era a sombra de Miles. Mas o boato de Miles ainda é mais creditado do que a verdade de Betty. Como ela coloca perfeitamente em 'Nasty Gal': Você arrastou meu nome na lama, por toda a cidade'. Betty tinha seu próprio jeito para contar seu lado da história. 

A liberação sexual de Betty Davis não foi tão bem recebida por seu público como a etnomusicóloga Danielle Maggio escreveu em sua dissertação sobre Betty Davis, que é a fonte mais completa sobre a cantora até hoje. A oposição à sua libertação vem de uma sociedade racista e machista que só aceita a sexualidade de uma mulher quando ela alimenta o patriarcado. Rádios, grupos religiosos e até a NAACP boicotaram sua música e, infelizmente, Betty lutou para continuar na área que ainda é dominada por homens que odeiam tudo o que ela representava.


Quando fiz meu projeto na Universidade sobre estrelas do rock que moldaram as mulheres modernas, não havia muitas fotos de Betty no Google. O Google me mostraria principalmente as da atriz branca Bette Davis e eu usei por engano um da cantora Marsha Hunt. As fotos de mulheres negras continuam sendo rotuladas erroneamente. ‘Mulheres negras não são iguais’. (Obrigada Sopa Alternativa por me dizer isso). Há uma foto famosa de Miles Davis chegando ao funeral de Jimi Hendrix com Devon Wilson e Jackie Battle e muitas fontes importantes como The Guardian, BBC e até mesmo série animada marcam ou Devon ou  Jackie como Betty. Aliás, esta foto de Marsha continua sendo marcada como Betty.

Quando homens brancos da Island Records disseram a Betty que se ela quisesse ganhar algum dinheiro, ela teria que se comportar melhor, como é cantado em uma de suas melhores faixas, 'Stars Starve, you know' de seu quarto álbum, Is It Love or Desire? foi sua última tentativa de dizer em alto e bom som que ela não podia ser domada. Ela continua e também chama atenção de Miles Davis por não entender porque as coisas vieram facilmente para ele e não para ela. "Eu deveria ter nascido homem". A música não apenas aborda questões de gênero, mas também de classe e raça. Acho que é uma música essencial para entender porque esse álbum foi arquivado e só foi lançado em 2009 e porque Davis foi demitida da gravadora. Ela gravaria seu último álbum, mais voltado para a disco music, o Crashin' from Passion, também conhecido como Hangin' Out in Hollywood,  com Martha Reeves e as Point Sisters. Em 1980, ela faria seus últimos shows no Japão e revelaria no documentário que enquanto lá, aprendeu muito com dois monges, mas a informação é muito vaga. Depois de ouvir a discografia de Betty, ler sobre ela e assistir aos filmes sobre ela, pode-se concluir que a música foi a ferramenta que encontrou para vocalizar não apenas seu prazer, mas também sua dor. E essa dor demais superou seu prazer que ela não conseguia vocalizar na mesma atitude destemida de antes. Se Betty conseguiu ficar tantos anos em silêncio, temos que ouvi-la do jeito que ela queria quando decidiu reaparecer. Podemos amar a diva fodástica que vemos no  Mike Judge Presents: Tales from the Tour Bus  e também a mulher que desceu do salto de diva no documentário. Mas sua experiência como compositora, produtora e amante do funk nunca esmoreceu quando descobrimos que ela trabalhou em sua última faixa depois de 40 anos sem pisar em estúdio, com Danielle Maggio, lançada em 2019. Vivemos em uma época em que aceitamos mais as histórias multifacetadas de uma mulher e as estamos contando através de lentes humanizadas.Estou feliz que Betty sabia que era amada por muitos antes de morrer. Poucas artistas negras tiveram a mesma chance. Seu legado vive!

Há sete meses gravei uma edição especial para o meu programa de rádio 'Cidade das Mulheres' em homenagem à carreira de Betty Davis. Além de escrever, também gosto de vocalizar histórias de mulheres nas artes. Você pode ouvir esta edição aqui.

O flyer do meu show. 


Esse artigo foi publicado originalmente em Inglês AQUI
Fontes:

https://en.wikipedia.org/wiki/Betty_Davis

https://www.jazzmusicarchives.com/album/betty-davis/crashin-from-passion-aka-hangin-out-in-hollywood

https://www.nytimes.com/2022/02/10/arts/music/betty-davis-dead.html


Comentários

Postar um comentário

Popular no Blog...