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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Lydia Lunch- The War Is Never Over (2019)

 

Foto: Annie Sprinkle

[A resenha contém spoilers e informações sobre agressão sexual e/ou violência que podem ser gatilhos]

ASSISTA AO DOC AQUI: https://ubu.com/film/lunch_war.html (não tem legenda em Português ainda)

Me lembro de quando comecei a curtir Lydia Lunch. Assim como aconteceu com muitos de seus fãs, seu álbum de estreia, Queen of Siam (1980), era um dos meus favoritos quando adolescente. Lydia tinha 21 anos quando ele foi lançado, mas ela já havia passado por muita coisa até aquele momento. Na capa, o look desafiador e bustiê com unhas pontudas (feito pelo fotógrafo de Glam Rock e Punk Paul Zone) passa uma mensagem de “não fode comigo” e na verdade é seu grito de guerra desde muito jovem. Lydia Anne Koch nasceu em Rochester, Nova Iorque, e veio de um lar abusivo. Seu pai a abusou sexualmente várias vezes enquanto sua mãe trabalhava como enfermeira. Isso também aconteceu na época do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, quando alguns dos protestos aconteciam bem em frente à sua casa. Ela fugiu de casa para o Lower East Side, em Nova Iorque, na adolescência, e encontrou sua voz através de várias formas de arte. Naquela época, a cidade parecia uma zona de guerra, com altos índices de criminalidade e muitos prédios abandonados devido à crise fiscal, e vivenciar cenários caóticos seria essencial para desenvolver sua personalidade “máquina de protesto em forma de mulher”.

Em Nova York, Lydia trabalhou temporariamente em um bar para roubar comida para amigos, que eram tão pobres quanto ela, e foi assim que 'Lydia Lunch' (lunch é almoço em Português) pegou. Quando ela fez amizade com alguns músicos no icônico CBGB, sua primeira banda, Teenage Jesus and the Jerks seria formada. Inspirado por bandas como Mars e Suicide, o grupo liderou o movimento Avant-rock chamado No Wave. Apesar do punk e do No Wave compartilharem uma veia antissistema e os mesmos locais de show em Nova York, os No Wavers não pretendiam soar como punk ou qualquer outra coisa, e assim criaram dissonâncias únicas que podiam ser inaudíveis, mas também transgressoras. Para Lydia, estar imersa em um movimento de contracultura como aquele era natural, pois dialogava diretamente com toda a turbulência que ela estava passando. As composições de Lydia para o único lançamento de Teenage Jesus and the Jerks, uma coletânea de 1979 pela Migraine Records, evocavam imagens da cidade e de uma Lydia desoladas. Seus poemas se tornaram canções e seu caos, arte. Ela não se limitaria a uma expressão artística temporária (No Wave não durou muito, mas você super tem que ouvir  a compilação No Wave feita por Brian Eno) e todos os seus outros trabalhos abriram o caminho para as mulheres assumirem suas formas mais autênticas no mundo das Artes. Sua carreira de mais de 40 anos e que abriu as portas para mulheres no Grunge (Babes in Toyland and Hole) e Riot Grrrl, foi documentada pela diretora do No Wave e amiga de longa data de Lydia, Beth B, que mostrou porque Lydia Lunch sempre será importante para as mulheres de qualquer geração.


Lydia Lunch,  toda gótica aos 14 anos, por volta de 1973. Foto: Sua página oficial no Facebook.


Foto por Eugene Merinov. Lydia  no clube Max's Kansas City, Nova Iorque, 1978. Lydia tocava sua guitarra com coisas como vidro e experimentava novos sons. Ela desafiou a ideia  de que os homens são os únicos que inovam na guitarra.

Lydia Lunch na capa da compilação do Teenage Jesus de 1979. Ela escreveu a música 'Babydoll' que parece ser sobre o abuso que ela sofreu e certamente inspirou o álbum Pretty on the inside do Hole (que tem uma música de mesmo nome) de várias maneiras. Foto: Reprodução

Uma das melhores capas de álbuns de artistas mulheres, sem dúvida! Foto: George DuBose


Lydia Lunch - The War Is Never Over (ou Lydia Lunch-A guerra nunca acaba em Português) de 2019,  começa com um trecho do curta 'Beauty becomes the beast' de Vivienne Dick e uma narração de Lydia sobre a vez em que um predador lhe disse para lamber os pneus do seu carro quando ela tinha 13 anos. Ela conclui que quando ela fez isso ela estava no poder e que não era sobre sexo. Esta citação praticamente traduz  a arte de Lydia. Ela explora seu relacionamento repleto de nuances com o seu corpo, sendo responsável por todas as suas escolhas, incluindo as sexuais. O documentário foca  principalmente no papel ativo de Lydia em navegar por várias formas de arte em nome de sua sobrevivência e de outros. Quando Richard Kern, um cineasta cult do underground, diz que foi chamado de misógino por filmar Lydia em seus curtas eróticos, ele questionou isso porque era a própria Lydia contando sua história,  e isso faz sentido. Sua sexualidade na frente das câmeras não é para consumo. É Lydia em sua odisseia, buscando paz em seu corpo, pegando qualquer caminho que pudesse para chegar lá e assim encorajando outras mulheres a fazerem o mesmo. Por conta do seu espírito incessante, ela se tornou a heroína do underground para artistas entrevistados no documentário como Donita Sparks do L7, Thruston Moore do Sonic Youth e a multiartista Kembra Pfahler. É interessante que cada entrevistado tem uma história diferente sobre como Lydia era intimidadora e sempre que ela aparece na tela e diz algo, você simplesmente não consegue desviar o olhar. Temos que reconhecer que os Estados Unidos dos anos 80 viram a misógina de Ronald Reagan, ridicularizando as feministas da segunda onda, e havia muitas mulheres que, apesar de terem conquistado muito graças ao feminismo, se recusavam a se reivindicar como feministas. As palestras de spoken word de Lydia da época eram uma forma de luta contra a concepção de que o feminismo não era mais necessário e ela desafiou o lugar reservado às mulheres no período Reagan ao protestar contra as guerras dos homens que oprimiam quem não tinha nada a ver, ou em termos Lunchianos, fodiam. Suas palavras soam mais verdadeiras do que nunca e confesso que senti falta de  mais foco no legado de seu spoken word,  que foi lançado pela empresa que ela criou nos anos 80 chamada Widowspeak. O documentário tem uma hora e dezessete minutos, mas não acho que foi tempo suficiente para discutir todas as contribuições que ela deixou para o mundo das artes. Em 1985, ela contribuiu para uma das músicas mais importantes do Sonic Youth, Death Valley '69, e fez parceria com a baixista da banda Kim Gordon e, Sadie Mae na bateria, para formar a banda de thrash feminina, Harry Crews; mas sua melhor colaboração foi definitivamente com o influente guitarrista Rowland S. Howland, lançando a joia do rock alternativo Shotgun Wedding, que inclui meu cover favorito de todos os tempos, Black Juju de Alice Cooper. Fiquei um pouco desapontada com a rapidez com que sua discografia é discutida porque acho altamente relevante reconhecê-la como uma das poucas mulheres na música que transitou entre vários gêneros musicais, uma vez que os homens sempre recebem mais crédito por isso.

The War Is Never Over é acompanhado pelo livro de Nick Soulsby que inclui as entrevistas completas do documentário e algumas coisas sobre Lydia que eu só soube a partir dele como que ela amava Dead Boys e que eles escreveram uma música para ela chamada 'I Need Lunch'  — se você estiver interessado(a) em saber mais sobre os ídolos de Lunch, leia essa entrevista incrível de 1999. Não quero entrar na discussão 'o livro x o filme' porque não sei como foi a produção. Beth e Lydia foram corajosas demais  para tocar em assuntos muito complexos e estou feliz por Beth B ter feito esse trabalho porque, embora Lydia Lunch seja controversa, temos com o doc um retrato humanizado dela e, portanto, uma compreensão diferente do que realmente é controverso. Lydia Lunch falou sobre seu abuso décadas antes do #metoo e explorou sua sexualidade diante das câmeras ressignificando a ideia do prazer feminino. O que realmente deveria ser controverso é que mesmo depois do #metoo, as mulheres continuam desacreditadas por suas histórias de abuso e que a sexualidade das mulheres ainda é um tabu. As obras de Lydia são um lembrete de que a guerra contra o patriarcado  ainda não acabou e que ela ainda está apta pra derrubá-lo, e o envelhecimento de Lydia nunca deve ser um obstáculo para isso.

Harry Crews. Foto: Reprodução


A linha do tempo das colaborações entre Nick Cave e Lydia pode ser encontrada aqui. Foto: ookami_dou

Em 1982, Lydia e a ícone punk Exene Cervenka da banda X lançaram um livro de poemas chamado Adulterers Anonymous (sem tradução no Brasil) e em 1995, o álbum de spoken word  Rude Hieroglyphics (sem lançamento no Brasil)
Foto: David Arnoff

Beth B e Lydia Lunch Foto: Curt Hoppe

Há sete meses gravei uma edição do meu programa de rádio, Cidade das Mulheres, sobre a carreira de Lydia. Você pode ouvi-lo aqui.



Em 2019, Lunch começou um podcast chamado The Lydian Spin, que ela apresenta semanalmente com o baixista da sua banda  Retrovirus, Tim Dahl. Ouça os episódios aqui.



Uma versão em Inglês desse artigo pode ser lida aqui

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