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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

MyFrenchFilmFestival (2023): Todos os filmes resenhados

Pôsteres de três dos meus filmes preferidos desta edição. Foto: Reprodução 


A décima terceira edição do MyFrenchFilmFestival, o festival de cinema Francês 100% online e gratuito ocorre desde 13 de janeiro e acaba hoje (13 de fevereiro). O evento organizado pela Unifrance é uma oportunidade única de não apenas assistir a longas e curtas atuais e de outras épocas, como também de enriquecer nosso conhecimento com a diversidade cultural de países francófonos apresentada nas obras. Saímos da Paris luxuosa e romantizada e adentramos nas realidades de quem, mesmo morando em Paris, sofre para se manter no estilo de vida padrão que vemos na maioria dos filmes franceses famosos. A diversidade do festival também se faz presente na maioria de mulheres diretoras dentre os 23 filmes desta edição. Na verdade, o público brasileiro e de outros países não têm acesso a alguns filmes que serão lançados no cinema posteriormente, entre eles os longas Rien à foutre (2022) (Bem-vindos à bordo em Português) que tem recebido ótimos elogios principalmente pela atuação cómica de Adèle Exarchopoulos, e À propos de Joan (Sobre Joan, em Português), com a nossa querida Isabelle Huppert. Ademais, o festival é essencial para estudantes e professores de Francês, que é o meu caso, podendo ser ferramenta útil nas aulas e para praticar em casa. A plataforma também disponibiliza legendas em diversas línguas, e para conferir os 17 curtas e 6 longas, clique aqui. Você também poderá votar na sua obra favorita para o Prêmio do Público nesse link. Caso você não viu todos os longas e curtas a tempo, você pode procurar os títulos no canal Omeleto, e nas plataformas Filmicca e Amazon Prime Video. Abaixo, leia as resenhas de cada obra do festival. 

LE MONDE APRÈS NOUS (2021)  




O primeiro longa do diretor Louda Ben Salah-Cazanas "O mundo atrás de nós" é inspirado na sua própria trajetória de como se tornou um artista reconhecido na França. No filme, temos a história de Labidi (Aurélien Gabrielli) um escritor de origem tunisiana que após lançar um conto de sucesso, precisa escrever seu primeiro romance para se manter. Enquanto lida com seu bloqueio criativo, o protagonista divide um apartamento minúsculo com seu amigo e trabalha como entregador de aplicativo. Em uma visita ao café de seus pais em Lyon, ele conhece Elisa (Louise Chevillotte) e se apaixona imediatamente. Os dois se entregam à paixão em meio às dificuldades de uma Paris para poucos. O filme é um retrato real da geração Millennial que corre de um lado para outro sem estruturas para se fixar. É quando sua realidade se torna sua arte que Labidi vê nisso seu único modo de sobreviver. Apesar do fim otimista, o filme poderia ter melhor explorado a vida de Elisa e dos pais de Labidi, pois serviram apenas de gancho para os avanços do artista. 


ORANGES SANGUINES (2021)



Traduzido como "Laranjas Sanguíneas", o longa de Jean-Christophe Meurisse é uma comédia que se utiliza do humor politicamente incorreto satirizando questões em voga dentro de um contexto Francês como a reforma da aposentadoria, a inclusão de pessoas com deficiência, e o movimento #metoo. No entanto, algumas dessas questões se apresentam inicialmente em diálogos interessantes, sem piadas vazias com o único intento de provocar. Somos apresentados a vários personagens que ao longo do filme se conectam. Tem um casal de idosos, os personagens mais interessantes do longa,  que precisa vencer um concurso de dança para quitar uma dívida gigante, mas que esconde o problema do seu filho que trabalha com o Ministro da Economia, e este será vítima de um ato que acredito ter estragado o filme. Acontece que o diretor conseguiu até certo ponto balancear o humor até banalizar o estupro. O personagem que comete o crime lembra excêntricos serial killers do cinema Hollywoodiano, mas seria mesmo necessário incluir isso em um filme de comédia?
Outro ponto que decepcionou foi a segunda vítima, uma mulher, parecer em certos momentos querer se tornar uma mártir do movimento #metoo. O filme não é esquecível, pode ser apreciado em suas discussões sobre política, mas não contribui em nada para um avanço no gênero comédia. 

CATARACTE (2021)



 Das cineastas Laetitia de Montalembert e Faustine Crespy, o curta "Catarata" conta a história de Nicky (Özay Fecht) uma imigrante que trabalhava em um carrossel que fechou há alguns e se encontra sem auxílio financeiro do Estado. Nicky tem uma pug com catarata chamada Izy e a trata como sua fiel escudeira, a cena do banho mostra isso. Porém, a protagonista decide partir deste mundo aos poucos, mas antes, precisa encontrar alguém para ficar com sua cachorra. Nesse tempo em que seus rémedios ainda não fazem efeito, a personagem encara os efeitos de uma sociedade cada vez mais individualista e que isola aqueles que não contribuem para seu funcionamento. Os vizinhos de Nicky não aceitam ficar com Izy e ela recebe a visita de um funcionário novato do serviço social, Jacques (Ferdinand Niquet-Rioux) que reafirma a frieza do Estado em assegurar o bem-estar dos desempregados e mostra a ingenuidade deste que não parece ter percebido a dureza do seu papel. Catarata é um dos curtas mais emocionantes do festival, pois, apesar dos efeitos crueis do capitalismo que adoence os menos favorecidos, mostra uma luz no fim do túnel, que não precisa ser vista, mas sentida, e Izy é enfim, acolhida. Um pouco de afeição ainda enche nossos corações. 

LE ROI DAVID (2021) 


"O Rei David" é sem dúvida, o meu curta preferido da seleção. Dirigido por Lila Pinell, ele traz Shana (Eva Huault) em busca de um emprego após sair de um relacionamento abusivo com um homem chamado David. Na primeira cena da obra vemos a personagem com o rosto meio enfaixado e acreditamos que ela estava ali para alguma cirurgia, mas só após a retirada temos conhecimento de que foi vítima de agressão física, mas ela tenta convecer o médico de que se machucou de outra forma. A maneira como as coisas se tornam ambíguas quando somos vítimas de abuso se faz presente no curta-metragem. Shana quer seguir em frente e trabalhar numa plantação de maconha nos Estados Unidos, mas constantemente visualiza David com uma coroa de rei. Isso ocorre porque homens abusivos nos tratam no início como princesas, ou nesse caso, rainhas, e só depois desvelam sua face cruel. A retirada da gaze do rosto da protagonista a faz enxergar um novo caminho. Para isso, ela conta com suas melhores amigas o que contribui para um retrato positivo das amizades femininas, mesmo quando há uma briga entre Shana e uma delas que a desaconselha a casar com um cara por dinheiro. O curta nos mostra que quando temos uma rede de apoio nos nossos momentos mais vulneráveis tudo se torna mais suave, e o que nos faz mal vai ficando cada vez mais distante. Ademais, uma perspectiva feminina na direção do curta traz uma fácil identificação e é o diferencial na abordagem do tema. 

LES MAGNÉTIQUES (2021)


O primeiro longa de Vincent Maël Cardona "Os Magnéticos" se passa numa cidade do interior da França no início dos anos 80 quando o candidato socialista François Mitterrand vence as eleições presidenciais e tudo parecia possível. No entanto, o clima sombrio do filme é sentido quando os irmãos Philippe (Thimotée Robart) e Jérôme (Joseph Olivennes) comandam um programa de rádio pirata no sótão de um bar. Jérôme, mais comunicativo, anuncia a morte do vocalista da banda Joy Division, Ian Curtis, citando a letra da música "Decades" em que Ian canta: "Aqui estão os homens jovens e o peso sobre seus ombros". Philippe, que lembra Ian fisicamente, olha o irmão em silêncio como se sentisse que ele também estivesse falando sobre si. De fato, os irmãos moram com seu pai e o ajudam na oficina, mas o estilo de vida boêmio de Jérôme incomoda o pai que responde com agressividade. Philippe, apesar de calado, é visto como prodígio, e somos apresentados a suas incríveis habilidades em remixar gravações de fita cassete. Esse link com a música da época parecia ser o tom do filme, mas isso logo se perde, e aparece em um outro momento quando Philippe está no serviço militar na Alemanha. Ele se apaixona pela namorada do seu irmão, Marianne (Marie Colomb) e os dois trocam fitas com músicas do momento e mensagens românticas no fim da gravação. O personagem também frequenta uma casa de shows da Alemanha Oriental e tem a oportunidade de mostrar sua bagunça sonora na emblemática no serviço de radiodifusão das Forças Armadas britânicas. O filme tinha a faca e o queijo na mão, mas se perdeu numa história de amor confusa e perdeu a oportunidade de aprofundar a relação dos irmãos e o futuro promissor do rapaz na rádio. Apesar disso, temos uma deliciosa fotografia noturna e uma trilha sonora saudosista. A cena de Teenage Kicks dos Undertones é bem executada. 


PALOMA (2022)


Uma odisséia drag queen é o que encontramos em Paloma, curta realizado e protagonizado por Hugo Bardin que também é drag queen fora das telas. Tudo que Paloma tem é sua bagagem e a urna com as cinzas de seu companheiro récem falecido. A personagem busca uma carona para o local que vai performar naquela noite e é em um bar quase vazio que conhece o caminhoneiro Mike (Augustin Boyer). Mike é de poucas palavras, contrasta com a inquietude de Paloma, mas os dois vão formar uma inesperada união, na qual clichês se desfazem e dão lugar a novos rumos na representatividade de relações LGBTQIAP+ no cinema. Não pelo fato de Paloma ser Drag Queen, mas pela sua orientação sexual, é importante frisar isso. Já vimos muitos filmes onde o caminhoneiro branco é machista, homofóbico e que até mata pessoas LGBT. Neste curta, Mike se mostra compreensível e até se diverte na boate onde Paloma performa. Ele também conta a sua história, mesmo assim, o curta não rotula a sexualidade dos dois, são duas pessoas solitárias e na estrada da vida como várias histórias que já vimos no cinema, mas aqui, uma delas é marginalizada e ainda assim, sobrevive no final. 

PARTIR UN JOUR (2021)


Outra boa surpresa do festival foi o curta musical de Amélie Bonnin, "Partir um dia", indicado ao melhor curta-metragem de ficção nos Prêmios César. A obra traz o ótimo ator Bastien Bouillon no papel de Julien, um escritor que saiu do interior e foi tentar a sorte na cidade grande. O problema é que ele critica a vida no interior em um dos seus livros e isso chateia seus pais, que quando o recebem em uma visita, satirizam a profissão do filho. Mas o que ele não esperava era reencontrar uma antiga crush de escola trabalhando como caixa de supermercado. Caroline, interpretada pela maravilhosa cantora Juliette Armanet, está grávida de um ex-colega de classe o que surpeende Julien, algo comum quando a gente vê colegas de classe que a gente nunca esperava que fossem namorar algum dia, aparecerem juntos anos mais tarde. Os personagens tentam se reaproximar indo nadar juntos, mas Julien percebe que deixou coisas mal resolvidas após o fim da escola. Caroline era afim de Julien, mas ele não percebia os sinais e a culpa de não ter sido mais direta. Agora que os dois não têm como ficar juntos, relembram os velhos tempos com uma ótima música de rap, que sinaliza a quimíca entre os dois atores. Apesar disso, voltar a cidade natal também significa reascender velhas paixões e dores e Julien decide não mais lidar com isso no dia seguinte. 

À NOS AMOURS (1983)


"Aos nossos amores" é um filme de Maurice Pialat responsável por revelar a atriz de apenas 15 anos, Sandrine Bonnaire, que se tornaria uma das maiores atrizes do cinema francês. O longa protagoniza a jovem de 16 anos, Suzanne, que se descobre sexualmente, ao passo que sua família tenta reprimi-la de diversas formas. A jovem passa suas férias em Côte d'Azur, onde transa pela primeira vez com um norte-americano que se mostra indiferente a ela. Diferente de muitos filmes onde meninas idealizam a primeira vez, aqui a personagem sente como se fosse uma experiência corriqueira, ao terminar o ato diz apenas "thank you". A sua falta de expressão é entendida aos poucos, quando os dramas familiares se desvelam por meio de atitudes violentas, físicas e psicológicas, que a levam a buscar refúgio no sexo, mas sem amor. Por um lado, seu pai, interpretado pelo diretor, sai de casa pra viver com outra mulher, por outro, sua mãe, entra numa paranoia de que sua filha não pode ser mais atraente que ela e a culpa pelo marido tê-la largado por outra. Já seu irmão nutre um desejo incestuoso por ela, e apesar de todos terem seus problemas morais de forma explícita, fazem com que Suzanne seja vista como a única disfuncional. Isso se dá porque não é considerado normal uma garota jovem dormir com várias pessoas. "Aos nossos amores" lida com a hipocrisia da considerada família tradicional na qual a "ovelha negra" sempre será punida. Aplausos para a cena de jantar que foi improvisada e onde a tensão ganha seu ponto mais alto. No fim, Suzanne tenta se encaixar nos moldes da família tradicional, não consegue, e visualiza novos horizontes onde possa ser livre para voar. 

BOOTLEGGER (2021)


Primeiro longa de Caroline Monnet, "A Contrabandista" se passa numa comunidade indígena no Quebec, Canadá, onde a estudante de direito Mani (Devery Jacobs) cresceu mas a deixou, dentre outros motivos, por conta de um trauma de adolescência que gerou revolta na comunidade. Interessante notar que alguns filmes do festival têm em comum esse retorno à cidade natal e os conflitos que isso gera. O diferencial de Bootlegger é que esse tipo de conflito é pouco visto no cinema, já que se trata de um povo minoritário com sua língua própria e próprias leis. É de fato um assunto delicado sair de sua comunidade e voltar com outros valores, nesse caso Mani propõe um plebiscito para a legalização ou não da venda de bebidas alcóolicas, algo que é tido como proibido para muitos indígenas da região, mas que outros querem ter a liberdade de beber. A diretora amarra outras questões pertinentes como a prefeitura que está mais preocupada com a proibição de bebidas do que a construção de escolas. Mani propõe usar o imposto das bebidas para a construção, mas o poder público teme a voz popular e a protagonista serve de contraponto. A melhor cena do longa é justamente quando ela vomita ao ver as toneladas de árvores que foram derrubadas, uma reação genial à hipocrisia dos que estão no poder. No fim, a democracia dá um passo largo, mas todas as questões pertinentes permanecem sem respostas concretas. A sensação de não conclusão talvez seja proposital porque é algo que carregamos quando lutamos por direitos mas sentimos que muito mais poderia ser feito.

MARIANNE (2022)



Curta de Julien Gaspar-Oliveri, "Marianne" conta com a excelente atriz Pauline Lorillard no papel de uma mulher que salvou crianças de um acidente de ônibus que caiu em um lago e é tida como heroína pela sua pequena cidade. O problema é que quando uma jornalista a entrevista no local do acidente, vemos os efeitos do trauma que isso causou. O curta faz uma excelente crítica ao jornalismo que se preocupa mais como aquilo pode gerar audiência do que com a humanização de quem sofre. Quando a jornalista se dá conta que desperta gatilhos, assume um ar mais preocupado e o filme ganha um tom mais intimista. Pauline está excelente em sua atuação, dando detalhes ricos de como sua personagem lida com o fardo do trauma e ao mesmo tempo sua fama. A cena em que ela passa batom e depois tira é importante para entender como ela se sente vulnerável naquele momento. Precisamos de mais filmes que mostrem os seres humanos por debaixo da capa de heróis, afinal de contas, como a protagonista diz em determinado momento: "Qualquer um teria feito o mesmo no meu lugar." 

NOUS N'IRONS PLUS EN HAUT (2021)


Realizado por Simon Helloco, "Não iremos lá em cima" se passa no campo onde dois irmãos, um de 8 anos e outro de 12, se divertem como querem em um mundo que parece pertencer somente a eles. No entanto, a brincadeira termina quando se menciona o andar de cima da casa. O mistério que se esconde ali não é fantasia, mas ainda assim é um monstro que aterrorizou as suas vidas. Ao longo do curta, temos pistas de que o pai dos garotos era violento e isso deixou traumas como quando o maior se impõe de maneira agressiva e o pequeno fala que ele está agindo como o pai. Todo escape tem seu prazo e apesar do resgate soar triste no momento, também nos diz que às vezes o mundo de fantasia não é suficiente para amenizar dores. A cena de suspense na floresta é o ponto alto do curta. 

UNE FEMME À LA MER (2022)


Outra boa surpresa sob a direção de uma mulher é o curta "Uma mulher no mar" de Céline Baril.  Louise Chevillotte brilha como a personagem principal (Anna) em sua epifania na Penísula do Sul da Turquia. Seu namorado Thomas (Bastien Bouillon) a acompanha, mas eles parecem distantes e  Anna se sente mais próxima de uma garotinha local, que acompanha a mãe vendedora, e que põe uma pulseira em seu braço. A protagonista tem um sonho de boiar no mar quando seu namorado grita seu nome pedindo socorro prestes a ser atacado por uma medusa. Segundo o dicionário dos sonhos, sonhar com uma medusa significa que você está deixando outras pessoas dominarem a sua vida. Isso não é explicado no curta, mas temos uma ideia de que há algo iminente e que mudaria a vida dos dois. Quando Anna acredita que a garotinha se afogou no mar, pode ser que ela tenha perdido a garotinha em si que dependia de alguém, e é nesse caminho em busca da garota, que ela se encontra sozinha e sem medo de encontrar uma medusa no mar. "Uma mulher no mar" dá margem a outras interpretações, mas aqui a simbologia do mar como espaço de renovação funciona bem. 

TITAN (2022)

 

Segundo curta-metragrem de Valéry Carnoy, "Titã" traz um garoto chamado Nathan (Mathéo Kabati)  entrando na juventude tendo como espelho o modelo patriarcal de como rapazes devem ser: violentos e viris. Acompanhamos como ele incorpora os hábitos do irmão mais velho ao colocar um cigarro atrás da orelha e manusear um canivete. Seu melhor amigo o leva para uma gangue que para ser aceito, deverá passar pelo ritual de atirar no líder com uma pistola de pressão trajando somente sua cueca. Quando Nathan perde a disputa, fica enfurecido e reage às provocações dos outros meninos. A mensagem que fica é que se ele não passou no ritual, ele não deixou de se tornar um rapaz, ao descansar sob os carinhos da mãe, aprendemos que a passagem para a adolescência pode ser menos tóxica. É assim que queremos que seja o futuro dos garotos. 

RONDE DE NUIT (2021)


Nesta animação muda de Julien Regnard, "Vigília Noturna", um casal se desentende em uma festa à la 'De Olhos Bem Fechados' de Stanley Kubrick, após uma traição do parceiro. Os dois saem da festa de carro pela noite, mas ela está sob efeito de álcool e acabam sofrendo um acidente. Sem sabermos se algum deles morreu, temos um flashback surrealista do que aconteceu naquela noite na festa em forma de remorso. A personagem feminina assiste à própria traição de um sofá e acompanhada por uma orgia como se estivesse no poder enquanto o homem se envergonha do ato. Em cenas que remetem ao filme O Iluminado, o companheiro pensa ver a esposa em atos sexuais com homens com cabeça de bicho, quando na verdade não é ela. É um curta-metragem em preto e branco, o que intensifica o seu ar sombrio. A lição que fica é que nos arrependemos das coisas somente depois que perdemos alguém, mas mesmo se tivéssemos a chance de tentar outra vez, poderíamos deixar a pessoa partir. 

NOUS (2020)


Nos arredores do trajeto da linha B do RER parisiense habitam muitas histórias pouco representadas na tela do cinema. A fim de humanizar o subúrbio de Paris, a diretora Alice Diop apresenta com o seu documentário "Nós", um projeto político mas sem protesto. Assistimos a cenas do dia a dia, uma magistral mescla de real e ficção, e na normalização desses cotidianos é que Alice concretiza o seu desejo. Da cuidadora de idosos aos adolescentes jogando Uno, temos pequenos retratos que se unem pela sua simplicidade, mas também urgência. Lançado no primeiro ano de pandemia da COVID-19, "Nós" nos lembra de valorizar cada momento que passamos com o outro, porque são efêmeros como o trem que atravessa rapidamente a linha. A própria diretora registra o seu momento quando vemos uma gravação VHS que fez de sua casa na adolescência. Ela afirma ser uma forma de guardar como sua casa era e também lamenta não ter filmado tanto sua mãe. Sendo assim, seu filme funciona como um lembrete de que podemos ser belos nos momentos mais singelos do nosso dia, e que há pessoas que finalmente podem sentir como se suas histórias estivessem sendo contadas na tela do cinema. 

MALMOUSQUE (2021)


Sabe aqueles filmes que nos dão vontade de nos mudarmos no dia seguinte pro lugar em que se passam? Assim é "Malmousque", título retirado da zona de pescadores em Marselha em que vemos as amigas Élina (Sophie Cattani) e Virginie (Hélène Mohamed) passarem seus dramas cômicos. Dirigido por Dorothée Sebbagh, o curta nos mostra que nem tudo que tentamos esconder precisa vir à tona. O gato de Virginie fugiu de casa enquanto Élina foge do que acredita ser o controle do seu marido através de um spyware no seu celular. A razão da paranoia de Élina são as coincidências que ela encontra entre alguma coisa que conversa com seu amante pelo celular e que é posteriormente dito aleatoriamente pelo marido. Então as duas costumam remar e sentar nas rochas para trocarem confissões longe de qualquer perseguição. Há também dois rapazes que são mediadores sociais e que não encontram banheiros públicos no vilarejo, mas quando conhecem Virginie e se encarregam de econtrar seu gato, usam sua casa também para namorar escondido. É interessante como um lugar deslumbrante como Malmousque vai mostrando seus defeitos e segredos. Um morador chega a sugerir que o que falta é um drone que pudesse mostrar o que todo mundo faz. Enquanto é comum de pequenos lugares que todo mundo se conheça e saiba da fofoca alheia, em Malmousque as pessoas são desconfiadas e mais interessadas em si mesmas. Élina chega a afirmar que Virginie não precisa do gato de volta, mas sim de um homem, o que é um tanto insensível. No fim das contas, a única coisa que de fato vem à tona é o bicho de estimação. 

QUE LA BÊTE MONTE (2021)


A atriz Pauline Lorillard brilha em mais um curta do festival, dessa vez sob as lentes de Marthe Sébille. Traduzido como "Deixe a fera sair", a obra se inicia com um acidente de ônibus no meio do nada e quando um dos passageiros, Alban (Louis Cristiani) ver a possibilidade de ir até a cidade mais próxima a pé, a personagem de Pauline (Lupa) decide ir junto. O que Lupa não fazia ideia era de que Alban, na verdade, usa uma tornozeleira, mas isso não a impede de seguir em frente. Ela tinha que estar em uma cidade em um determinado horário, mas quando os dois adentram uma foresta que se revela mágina, a protagonista se liberta das limitações do mundo urbano e vai aos poucos se entregando à liberdade da natureza. A sua saúde frágil (vemos seu nariz sangrar mais de uma vez) dá lugar a uma mulher capaz de proteger o homem dos perigos da natureza. "Deixe a fera sair" é sobre a inversão dos papéis. É Lupa que toma as rédeas até na cena do sexo. Porém, sua força é detida pelo patriarcado. Mulheres como Lupa sempre são caçadas e o curta poderia ter revertido esse fim também. 

BELLE RIVER (2022)


A resiliência de um povo afetado pelas mudanças climáticas é o tema principal do curta "Belle River" que fecha a trilogia de Guillaume Fournier, Samuel Matteau e Yannick Nolin sobre a cultura Cajun da comunidade de Belle River, que engloba costumes e tradições do sul da Louisiana, Estados Unidos. Apesar de se passar nos Estados Unidos, uma parte da população fala Francês por causa da ascendência francesa. No ano em que o curta documentário foi filmado, 2019, uma enchente acima da média inundou a região a deixando com aspecto de cidade fantasma como na série The Walking Dead. Os poucos habitantes da região, pelo menos os que aceitaram ser filmados, pertencem à terceira idade e não se deixam abalar pela atrocidade. Um casal dança usando um par de galochas, único calçado possível em Belle River, e vemos uma estátua de madeira de Donald Trump. Isso não surpreende pelo fato de sua última campanha ter se concentrado no slogan "Make America Great Again" (Torne a América Grande Novamente, em Português) e como o sul dos EUA era favorável ao candidato, era de se esperar que a comunidade depositasse sua esperança no candidato. Além disso, havia a possibilidade de que as eclusas do canal Morganza fossem abertas por conta do alto nível da água, o que poderia romper a estrutura do canal. O curta deixa em aberto se o projeto ia ser realizado, o que também levaria a uma maior inundação de Belle River, mas depois li a notícia que a abertura não ocorreu. Mesmo assim, as pessoas que decidiram ficar na região são uma verdadeira comunidade e nos dão uma lição de resiliência que não aprendemos, por exemplo, durante a pandemia do COVID-19. 

LAISSÉ INACHEVÉ À TOKYO (1982)


"Deixado inacabado em Tóquio" do renomado diretor Olivier Assayas, é curta que foi realizado na época em que ele trabalhava como escritor no Cahiers du Cinéma. Este fato é importante para entender as inspirações do então récem cineasta para o curta. Passado entre França e Japão, temos a misteriosa jornada de uma jovem escritora interpretada pela artista Elli Medeiros que viaja para o Japão para escrever um romance de aventura e se envolve em uma trama de espionagem. A fotografia é certamente inspirada pelo cinema noir enquanto o roteiro é típico de um filme da Nouvelle Vague, algo que Godard filmaria. Além disso, o curta conta com a presença de Arielle Dombasle, atriz constante nos filmes do diretor da Nouvelle Vague, Éric Rohmer. "Deixado inacabado em Tóquio" tem seus momentos interessantes como quando a protagonista aprende artes maciais numa referência a filmes asiáticos, influência que se firmaria nos futuros longas de Assayas, e quando o espectador não se sabe se se trata de duas personagens diferentes ou não. Mesmo com  confusão de um roteiro que poderia ter sido melhor trabalhado, o curta-metragem tem uma personagem femnina interessante e é uma ode apaixonada ao cinema. 


ANXIOUS BODY (2021)


"Corpo Ansioso" de Yoriko Mizushiri é um curta animado e sensorial na medida certa. Eu o assisti duas vezes e nas duas sessões meu corpo respondeu aos movimentos de toque que a obra brinca. Com apenas uma fita, uma raquete e uma lapiseira, a diretora criou uma conexão entre formas geométricas e sequências que vão se intensificando até culminarem em algo simples e do nosso cotidiano, um corte na pele. Ter uma "pelizinha" do dedo solta pode ser trivial ou um terror para qualquer pessoa dependendo do seu estado no momento. Acredito que a principal idea da obra é nos lembrar do nosso corpo, já que em crise de ansidade até podemos ter uma sensação de não estarmos nele. São 6 minutos suficientes para que tiremos nosso corpo da monotonia e o coloquemos em estado de alerta de que estamos vivos. 


HISTOIRE POUR 2 TROMPETTES (2021)


"Histórias para 2 trompetes" de Amandine Meyer, é um dos últimos curtas do MyFrenchFilmFestival. É uma animação onírica que dá um show de criatividade entre o montar e desmontar do que seria a linha do tempo de uma garota. Começamos com a primeira decepção amorosa que deságua em um rio de lágrimas e que nos transporta ao fundo do dilema da maternidade. Esta parte da obra ganha um aspecto de pesadelo e inocência. Somos criadas para pensar na maternidade desde novas e a animação poderia ter saído de um relato de qualquer menina. Ademais, a trilha sonora se encaixa com a atmosfera surrealista e infantil e o simbolismo do fim é genial. Podemos ter horror às coisas de adulto como namoro e maternidade quando crianças e querer jamais passar por isso, mas nunca sabemos o que vai ocorrer de fato. Apesar disso, o filme nos faz retornar a nossa criança interior e refletir sobre o que queríamos e o que de fato aconteceu. É uma obra para todas as idades. 

NUISIBLES (2022)


"Pragas" de Juliette Laboria é mais um curta animado com o traço delicado do giz de cera, mas feroz em sua crítica. É verão e  adolescentes se unem para pegar frutas das árvores e fazerem um piquenique. O que elas não esperavam era a visita de um grupo de vespas que também se sente no direito de usufruir dos alimentos. É claro que nessa os humanos tentam de várias maneiras se livrar das vespas, numa crítica à questão do poder que exercemos sobre o meio ambiente. O curta nos mostra que a destruição não está somente no que vemos na TV realizada por homens adultos e as queimadas em massa. A destruição começa de nossos pequenos atos que de perto são ofensivos. 

PLEASE DON'T TOUCH (2020)



"Por Favor, Não Toque!" de Capucine Gougelet fecha a 13ª edição do festival em grande estilo, isso porque o curta animado se passa dentro de um museu. Quando um funcionário remove o "não" da regra que dá título à obra, já nos situa na ruptura de outras que ditam o seu tom. Somos levados a questionar alguns absurdos comportamentais através de outros quando como um rapaz leva um tiro do guia do museu por não olhar para uma obra quando o grupo em que estava o fez ou quando pessoas morrem ou perdem parte do corpo por tocarem em obras de arte. Essa dinâmica de ação e punição se sobressai ao intuito principal de ir ao museu para apenas observar. Afinal, os visitantes podem ser tão transgressores quanto as obras que veem. Em algumas vezes eles e as obras se assemelham e se perdem dentro do museu. A  personagem fotógrafa é o ponto-chave! 

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