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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Peréio, Eu te Odeio (2023)

 

Pôster do documentário "Peréio, eu te odeio". Foto: Reprodução

Há 83 anos nasceu um dos mais irreverentes atores brasileiros, Paulo César de Campos Velho, mais conhecido como Paulo César Peréio. Sua singularidade vem desde a infância quando o apelido "Peréio" pegou pelo seu jeito único de andar. Dono de uma voz inconfundível e, por vezes, sedutora, o gaúcho de Alegrete carrega consigo mais de meio século de carreira marcada por papéis icônicos no cinema, na TV e no teatro, por mais que muitos afirmem que ele sempre estivesse interpretando a si mesmo. Eu lembro do primeiro filme que vi de Peréio, "Eu te amo" (1980) de Arnaldo Jabor. Nele, Peréio e a diva Sônia Braga são dois perdidos numa noite, vulneráveis e ardentes. Se eu tivesse visto este filme no cinema e depois fosse entrevistada, ao me perguntarem "O que você achou do protagonista do filme?" Eu responderia: "Intenso, porém charmoso. Com certeza alguém que me atrairia como um imã, assim como aconteceu com a personagem de Sônia." E foi o que aconteceu mesmo sem me perguntarem nada. Por coincidência, o último filme que vi do Peréio foi "Aventuras amorosas de um padeiro" (1976), de Waldir Onofre, que se passa onde moro atualmente, Campo Grande, Rio de Janeiro. Na época eu brinquei "Isso é o mais perto que chegarei dele", mal sabia eu que ficaria bem próxima a Peréio, mas longe de Campo Grande. 

Pôster criativo do filme As Aventuras Amorosas de um Padeiro. O papel rendeu a Peréio o Kikito de 'Melhor Ator Coadjuvante' pelo Festival de Gramado. Foto: Reprodução


Uma das funções de um documentário é trazer a pessoa por trás do artista mais próximo ao público. Isso é bem importante quando o artista vira um mito. No caso de Peréio, ele se tornou uma figura emblemática do nosso cinema justamente por ser um anti-herói, alguém que foge ao ideal de um exemplo a ser seguido, mas o que mais instiga os fãs é que apesar do jeito despojado e cafajeste que embaça personagem e homem fora das telonas, há alguém de fácil identificação e passível de ser amado. Como seu personagem no maravilhoso "Chuvas de Verão" (1977) de Cacá Diegues, Peréio pode ser tanto aquele cara que chega junto e se oferece para uma cervejinha em sua casa, como também aquele que pode te meter em encrenca. Será que existe algum personagem de Peréio que seja totalmente detestável? Até agora não vi. No entanto, contestador do jeito que é, o ator preferiu ouvir daqueles que o detestam no seu anti-documentário, segundo suas próprias palavras, "Peréio, eu te odeio" no início dos anos 2000. O encarregado da difícil função de dirigir Peréio foi o também gaúcho, Allan Sieber. Os dois já haviam trabalhado antes no curta de animação do cartunista "Os Idiotas mesmo" no qual Peréio interpretou a si. Quem deu a ideia de fazer um doc em homenagem ao ator de "Bang Bang" (1971) foi a produtora da animação citada, Denise Garcia, e não faltaria uma longa fila de pessoas do meio artistíco e convívio pessoal para desmistificar o mito.   


Raridade... Peréio sorri em foto com os saudosos e grandes atores José Wilker e sua ex-esposa, Neila Tavares. José e Peréio atuaram em "A Vida Provisória" (1968); "Os Inconfidentes" (1972); "Dias Melhores Virão" (1989); "O Homem do Ano" (2003) e "Onde Anda Você" (2004). Foto: Reprodução


Da esquerda à direita: Ivan Cândido, Paulo César Peréio e Hugo Carvana no início de suas carreiras em "Os Fuzis" (1964). Foto: Reprodução

A odisseia para lançar o documentário levaria mais de 20 anos. Apesar de ter feito mais de 100 filmes, o ator tem a fama de dar trabalho aos diretores, e com Allan não seria diferente. Mas não foi apenas o gênio difícil do ator que ficou no meio do projeto. Já não é novidade que o cinema nacional tem um longo histórico com déficit de recursos. Então não seria uma tarefa fácil conseguir financiamento para uma obra entitulada "Peréio, eu te odeio", por mais que Peréio tenha contribuído tanto para o cinema atuando, como também dublando—recomendo conferir suas cenas hilárias como dublador em "Dias Melhores Virão". Há mais de uma data que foi marcada para lançamento ao longo de duas décadas, com matérias em jornais, trailers no YouTube e uma campanha no Catarse. O ator até chegou a brincar que era melhor esperar ele morrer para filmar. Apesar de todos os perrengues que a produção teve, é um alívio saber que Peréio ainda está aqui e pode conferir a estreia do doc. Ela ocorreu na 23ª edição do Festival do Rio no Estação NET Botafogo. Na sessão, quando Allan mencionou a fala de Peréio citada acima, ele gritou da plateia "Eu já tô morto!" arrancando risadas de uma sala cheia. Aos 82 anos, Paulo César ainda emanava a mesma energia caótica e atraia centenas de fãs para ouvir outras pessoas falarem mal do seu ídolo. 


Hugo Carvana e Peréio no icônico "Vai Trabalhar, Vagabundo!" (1973) dirigido pelo primeiro. Peréio também teria presença marcante em outro filme do diretor/ator, o inesquecível "Bar Esperança" (1983). Foto: Reprodução



A atriz e ex-esposa de Paulo, Cissa Guimarães durante participação do antigo programa do Canal Brasil do ator, "Sem Frescura", no qual entrevistava amigos do meio artístico e que era dirigido por sua filha com Neila, Lara Velho. Cissa e Peréio tiveram 2 filhos, João e Thomás. Foto: Reprodução


Peréio e seu filho João Velho (à direita) e seu neto Pedro no Retiro dos Artistas, onde vive atualmente. Foto: Reprodução 


E vale mesmo a pena conferir esse doc? Ainda que se tente desconstruir o ícone a partir de falas de suas ex-esposas, filhos, colegas de trabalhos e até a própria equipe de filmagem,  não é uma obra feita para se levar (tanto) a sério. Eu imagino que se fosse um antidocumentário sobre a maioria das lendas vivas, ou não, do cinema, seria pedante. Mas a gente consegue rir e se apaixonar mais ainda por Peréio a cada caso contado. Dois casos merecem muita atenção do espectador. Um deles é quando o eterno Hugo Carvana conta que antes de conhecer Peréio, foi roubado por ele em um bar. Outro é quando o ator Stepan Nercessian narra a aventura de motocicleta em um morro do Rio de Janeiro seguida de batida policial, história ilustrada no doc, dando um tom característico do diretor ao mesmo tempo que nos leva a imaginar toda a cena. E no fim das contas, Paulo vence na lábia.

Aliás, o ator gaúcho mas com muita pinta de carioca não é apenas essa "porra loca" que a gente pensa. Em 2006, ele lançou o livro Por Que Se Mete, Porra? Delicadezas De Paulo César Pereio num ritmo beatnik de fluxo de pensamentos, revelando sua veia poética e sensível. Um encontro de Shakespeare com Jack Kerouac, mas após uma noitada numa birosca paulista (que contenha uma sinuca, claro). De certa forma, não seria possível imaginar a improvisação de personagem, algo recorrente ao ator, sem se alimentar de fontes intelectuais e artísticas, pois de bobagem nada tem a verborragia de Paulo César Peréio. O documentário explora todas as nuances possíveis do eterno Afraninho de "O Bom Marido" (1978), mas ainda assim não é suficiente, até porque Peréio tem seu lado solitário. Não é que tenha sido um artista reservado, mas acho que preserva um pouco de si em nome de sua sanidade. Isso soa engraçado, mas a cada cena de seus filmes que é mesclada a falas de outras pessoas, percebemos que Peréio é uma lenda viva e é incrível que ainda esteja aqui depois de tudo (mesmo que com um atraso de 40 anos, segundo ele mesmo). 

"Peréio, eu te odeio" é ver para crer. Um anti-documentário que funciona e resistiu a todas as improbabilidades, assim como o próprio Paulo César Peréio que caiu várias vezes, mas se reergueu com a força do seu amor pela vida e pela arte, e apoiado por aqueles que amam a arte e amam Peréio. Afinal de contas, te amamos, porra... quis dizer.. Peréio.

Da padaria do Marques de "As Aventuras Amorosas de um Padeiro" em Campo Grande até Botafogo. Foi também um odisseia ir até você Peréio, mas valeu muito a pena. É claro que nossa conversa foi bem no estilo dele de ser. Eu dei minha cópia do Por Que Se Mete, Porra? sem caneta para ele autografar e ele solta "Não tem lápis e sem lápis não há o que fazer."


Fã feliz com seu livro autografado minutos antes da sessão do documentário. 









Comentários

  1. Bem legal, parabens pelo texto.

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    1. Faltou assinar, Adelvan aqui. Aproveitando, o que o termo "pereio" tem a ver com o jeito de andar? Deve ser algo bem gaucho, imagino.

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    2. Eu acho que vou colocar um hiperlink de uma entrevista que ele explica isso. Veio do seu jeito de andar meio jogado pra frente e o chamavam de "Nego Véio", daí sua irmã, que não sabia falar direito, repetia o apelido como "Vevéio" e o pai deles, brincando com isso, falava "Vevéio, Peréio" e mais um nome que não lembro, mas aí o "Peréio" pegou.

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