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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

20 anos de Absolution do Muse

 



2003 foi uma explosão de novidades no mundo da música. Tivemos os álbuns de estreia de Yeah, Yeah, Yeahs, assim como de Amy Winehouse, Evanescence, Beyoncé (solo) e 50 Cent — ele dominou as paradas musicais do ano ao lado da penúltima. O mundo também era tomado por dois hits atemporais que eram acompanhados de clipes igualmente marcantes. Seven Nation Army do The White Stripes e Hey Ya! do Outkast. Era também início da Guerra do Iraque e Madonna teve muito o que dizer em American Life. Depois de um quase fim de mundo na virada do milênio, da queda das Torres Gêmeas e da chegada de mais uma guerra, uma banda que já havia conquistado o mundo com guitarras furiosas, baixo dilacerante e baterias bombásticas, canaliza a ordem, o caos e a incerteza do sentimento mais humano que existe, o amor. Matt Bellamy, Chris Wolstenholme, e Dominic Howard, o power trio do Muse, lançou Absolution  com a convicção de que o mundo precisava, naquele momento, de uma arte que aliena ao mesmo tempo que desestabiliza. 

Com seus dois primeiros álbuns, Showbiz e Origin of Symmetry, o trio de Devon, Inglaterra, queria provar que podia tocar fora de banheiros (lugar simbólico) e que renascia a cada álbum, fugindo das fortes comparações iniciais ao Radiohead— banda que também lançou um álbum muito legal em 2003. Em Absolution, Muse não precisava mais provar que mandava bem, a intenção agora era expressar suas visões sobre temas universais, de modo imperativo, mas mantendo sua melancolia, o que se tornaria a marca definitiva da banda.  

Da esquerda à direita: Chris, Dom e Matt na sessão de fotos do Absolution. Foto: Ralph Perou

And this is the end
This is the end
Of the world ....

Na 'Intro' de Absolution, os integrantes da banda pisam em cascalho para simular uma marcha com comandos alemães de fundo (recomendo a experiência com fones de ouvido). Aqui, Muse já dita que o rock abraça a política e contesta regimes, não é à toa que eles são fãs ávidos de Pink Floyd e sentimos a inspiração na faixa seguinte, 'Apocalypse Please' e seu synth à la 'On the run'. Além disso, Muse também buscava mais experimentação sonora para o disco, e a bateria da faixa foi gravada na beira de uma piscina. O piano sombrio de Matt é o toque esperado pelos fãs, que são chamados para mudarem o curso do fim do mundo, e realmente toda vez que nos deparamos com guerras, é uma mostra de apocalipse, algo que se repete em 2023.

I won't let you bury it
I won't let you smother it
I won't let you murder it...

Outra marca do Muse é o baixo fuzz e funk de Chris. É ele que abre 'Time Is Running Out', música obrigatória dos seus shows e a última a ser gravada para Absolution. É uma letra típica de Matt, que desde Showbiz se mostra alguém que não se deixa ser dominado, e por isso usa muitos verbos no imperativo e na forma negativa, como na repetição de "I won't let you..." (Eu não deixarei você...). Independente da força que esteja tentando dominá-lo, muitos fãs interpretam suas composições como parte das suas próprias histórias de libertação. A música pode sim nos libertar! Ademais, a rima da letra— como as terminações -tion— e sua batida, nos remetem à banda punk Television, que sem dúvidas deixou pedaços de seu legado em muitas bandas alternativas. Mas Muse avisou que a principal inspiração por trás de Time Is Running Out foi Billie Jean de Michael Jackson. 

Lips are turning blue
A kiss that can't renew
I only dream of you
My beautiful

Tanto 'Time Is Running Out' quanto 'Sing For Absolution', faixa seguinte, têm clipes que parecem ter sido tirados dos livros de Philip K. Dick. A queda da civilização, a resistência e as novas formas de amor. Em 'Sing For Absolution', os astronautas assistem ao seu fim inevitável, mas Matt prova que o amor é o último que morre e se agarra a isso, como em algumas histórias de Dick. A própria capa do Absolution, que mostra sombras de seres alienígenas sobrevoando a Terra, em fuga ou chegada. Considerando um mundo como o nosso, a interpretação fica aberta. 

A capa de Absolution foi inspirada na pintura Golconda do surrealista René Magritte. 

This is the last time, I'll abandon you
And this is
The last time I'll forget you...

'Stockholm Syndrome' é a minha música preferida do Muse. Ela carrega todos os elementos que fazem de Muse uma grande banda. Riff visceral com um refrão no qual o piano e vocal melódicos de Matt se confundem. A letra também é notável e faz jus ao seu título, na qual uma vírgula traz duplo sentido. "Essa é a última vez, vou te abandonar." contra "Essa é a última vez que vou te abandonar.". No clipe, os rapazes foram filmados por uma câmera térmica no estúdio de gravação do álbum e como alguém comentou no vídeo oficial do YouTube, a câmera não era necessária para mostrar que eles estavam pegando fogo. 


And I'll feel my world crumbling down
Feel my life crumbling now
Feel my soul crumbling away
Falling away
Falling away with you...


Se Stockholm traz o lado mais intenso de Muse, 'Falling away with you' é a prova de que a banda sabe equilibrar músicas mais melódicas com as pesadas. A música se inicia de maneira delicada, acompanhada de um violão e descende para uma guitarra em loop, nos levando junto nessa espiral descendente na qual memórias vão ficando para trás. A trajetória é acompanhada de um 'Interlude' e a tensão culmina em 'Hysteria', a mais querida entre muitos fãs e admiradores de longe do Muse.

'Cause I want it now
I want it now
Give me your heart and your soul
And I'm breaking out
I'm breaking out
Last chance to lose control...

Ouviram? É isso mesmo. É a última chance de dar o seu coração e alma ao som do Muse. O baixo de  'Hysteria' já foi votado como o melhor de todos os tempos pela revista musical, NME. Se a letra pode ser interpretada como a banda nos seduzindo com seu som hipnótico, no clipe, o personagem do brilhante ator Justin Theroux nos remete ao paranoico do musical The Wall sentado em frente à TV e destruindo o quarto. Sua obsessão em ser correspondido leva ao seu momento explosivo quando rejeitado. Aliás, muitas pessoas também interpretam a música como sendo referência ao orgasmo feminino, devido à origem do termo. 


 Justin Theroux se entregou de corpo e alma ao clipe de Hysteria. 


Don't kid yourself
And don't fool yourself
This life could be the last
And we're too young to see.

Se 'Hysteria' é sobre sair do controle, 'Blackout' nos aconselha de forma séria que não precisamos ter pressa em envelhecer. A música foi gravada com mandolim/bandolim e está no rol das músicas mais belas da banda. Nos lembra Blue Velvet. É uma daquelas que apenas o vocal de Matt seria suficiente para criar a melodia. Clica nessa apresentação ao vivo para senti-la da melhor forma possível. 

Best, you've got to be the best
You've got to change the world
And use this chance to be heard
Your time is now (your time is now)

'Butterflies and Hurricanes' é outra faixa que te leva a uma montanha-russa de emoções, o contraste já se faz no  seu título, provando que não dá para pular nenhuma faixa do álbum. Ela segue o otimismo de Blackout, falando sobre tirar o melhor de cada situação, e também na aproximação do significado da palavra Absolution (Absolvição, em português) que é a libertação do sentimento de culpa. Ainda falando nisso,  'The Small Print' é inspirada no poema 'Fausto' de Goethe partindo do ponto de vista do demônio convencendo um rock star do tipo Fausto a vender sua alma em troca de sucesso. Aqui temos o retorno da temática da culpa sobre as ações do personagem que faz o pacto. A faixa parece ser uma alusão ao disco Showbiz, no qual a banda queria provar às gravadoras que seria capaz de sair da sua cidade pequena e ganhar o mundo, assim como uma crítica a como os classificam como "vendidos". Mesmo operando dentro do mainstream, Muse não deixou de lado sua crítica mordaz ao sistema do qual se beneficia. 
Segue um trecho da letra: 

Take, take all you need
And I'll compensate your greed
With broken hearts
Sell, I'll sell your memories
For 15 pounds per year
But just the good days

Esse gatinho pode ser ouvido miando nos 2:51 de The Small Print. 


Hopelessly I'll love you endlessly
Hopelessly I'll give you everything
But I won't give you up
I won't let you down...

'Endlessly' é daquelas belezas escondidas que quase ninguém fala sobre, apesar de ser apreciada pelo maravilhoso Ewan McGregor. É também a canção mais pop do disco, apesar de ter nascido mais rock'n'roll, e pode ser considerada uma mostra do rumo mais pop que a banda tomaria. 


It scares the hell out of me
And the end is all I can see
And it scares the hell out of me
And the end is all I can see
Yeah-yeah, yeah-yeah, yeah-yeah, whoa...

Muse volta a falar sobre conflito religioso em 'Thoughts of a Dying Atheist' na qual o personagem questiona a existência do céu e inferno no seu leito de morte. Além disso, assim como 'Stockholm Syndrome', Thoughts traz um trecho ambíguo. "It scares the hell out of me" algo como "Isso me assusta" traz a palavra "hell=inferno" na expressão para dar ênfase, mas que acaba sendo ironia um ateu usar. É como um ateu brasileiro falar "pelo amor de Deus". Apesar do tema ser pesado, Matt consegue suavizá-la ao mesmo tempo que ela é ótima para bater cabeça. Acredito ser uma das suas melhores letras, embora seja pouco lembrada pela própria banda. 

You're working so hard
And you're never in charge
Your death creates success
And you'll build and suppress...

Em 'Ruled By Secrecy', Matt explora seu falsete até ficar quase inaudível, mas nada se compara ao que ele entrega em 'Micro Cuts' do Origin Of Symmetry. O clímax do piano é, sem dúvida, a melhor parte da música, que se amarra à narrativa sobre o medo de perder o controle sobre nossas ações. É a última faixa do disco,e  talvez indique o medo da banda de fugir muito às suas origens e serem controlados pela indústria musical, uma vez que o título da música coincide com um livro sobre sociedades secretas que controlam o mundo. Depois de Absolution, muitos acreditam que a banda perdeu a sua essência e nunca mais foi a mesma. Acho os discos posteriores Black Holes and Revelations e The Resistance ótimos, curto uma coisa ou outra dos seguintes, mas ainda continuo amando como Muse cutuca o sistema, independente da direção sonora escolhida. 


Bônus: 
Breathe in deep
And cleanse away our sins
And we'll pray
That there's no god to punish us
And make a fuss...

Vocês conhecem a faixa 'Fury'? Ela foi lançada apenas na versão em CD japonesa na época e  foi incluída recentemente no box de aniversário do álbum, ao lado de demos,versões ao vivo e remasterizadas. Fury foi rejeitada por Chris e Dom inicialmente, mas tem um dos riffs mais viciantes do Muse. Diante dos conflitos sobre culpa e religião, a faixa dá o veredito: rezemos para que não haja nenhum deus para nos punir. Sim, Deus é escrito em d minúsculo para esclarecer que é preferível acreditar que não existe um poder divino porque não sabemos sua real intenção. E se tudo que nos dizem sobre o céu for o contrário? 2003 com certeza foi um ano em que tudo isso poderia ser questionado, afinal, o que explica tanta tragédia para quem não merecia? 

Portanto, Absolution do Muse chegou aos seus 20 anos em 2023 com o mesmo vigor e segue um clássico absoluto. O trio mergulhou na profundidade de seus temas e sonoridade, conquistando milhares de fãs numa época de muita paranoia, conflito e incerteza. A música sempre se mostrou uma válvula de escape em meio ao caos, e Muse estava lá para abraçá-lo e transformá-lo em intensas melodias. 



Referências:
https://www.musewiki.org/MuseWiki 
Outras referências podem ser encontradas ao clicar nos hyperlinks em roxo ao longo do texto. 

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