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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

30 anos de Live Through This do Hole


"As God is my witness, as God is my witness they're not going to lick me. I'm going to live through this and when it's all over, I'll never be hungry again. No, nor any of my folk. If I have to lie, steal, cheat or kill. As God is my witness, I'll never be hungry again."

"Com Deus por testemunha, com Deus por testemunha, não vão me derrotar. Vou sobreviver a isso. E, quando passar, nunca mais sentirei fome! Nem eu e nem minha família. Mesmo que eu minta, roube, trapaceie ou mate. Com Deus por testemunha, nunca mais passarei fome!" — Scarlett O'Hara, protagonista do clássico 'E o Vento Levou' (1939)


A frase proferida pela personagem de Vivien Leigh em meio às ruínas de tudo que conheceu como o seu inabalável mundo serviu de inspiração para o título do segundo álbum da banda punk Hole, Live Through This, liderada por Courtney Love. Ambas Scarlett O'Hara e a vocalista e também guitarrista da banda atravessaram tragédias e reuniram forças para reconstituírem suas vidas catando pedaços pelo chão. No caso de Courtney, sua inserção na cena punk é de longa data, porém seu casamento com o último grande rock star e ex-líder do Nirvana, Kurt Cobain, pavimentaria um árduo caminho que Love enfrentaria de forma assertiva ao mesmo tempo que vulnerável, a mesma atitude de O'Hara.  Isso se traduz neste álbum emblemático, que colocou uma banda encabeçada por uma mulher no panteão grunge e masculino dos anos 90, assim como na ficção nos anos 30 na qual Scarlett assumiu o controle dos negócios, feitos fora da curva para mulheres, uma vez que o machismo impera em qualquer época. 

E se o primeiro sinal de que Live Through This do Hole é emblemático recai no seu processo e posterior sucesso, é preciso alertar que a banda só pode desfrutá-lo em momento de dor. Ainda traçando paralelo com o 'E o Vento Levou', se há um final feliz na história do álbum, é o seu legado, e como são 30 anos do seu impacto, e parece que o tempo realmente voa, é preciso refrescar nossas memórias sobre como Courtney sobreviveu para criar a sua obra-prima. 

Courtney Love, que fará 60 anos em julho de 2024, começou a experimentar ares transgressores ainda pequena, quando sua família vivia em comunidades hippies. Seu pai foi empresário do grupo psicodélico The Grateful Dead e Love já afirmou que ele lhe deu LSD quando criança. Quando adolescente, a jovem de São Francisco foi colocada num internato para meninas devido ao seu comportamento errático e anos depois se tornaria stripper, passaria uma temporada na Inglaterra se apaixonando por bandas como Echo & the Bunnymen (Hole já fez um cover de 'Do it clean') mas seria mesmo impactada por mulheres como Patti Smith, Stevie Nicks (Fleetwood Mac) ouça o cover de Hole para 'Gold Dust Woman', e Chrissie Hynde (The Pretenders). Courtney não somente amava mulheres no rock, como também formou bandas femininas com Jennifer Finch (L7) e Kat Bjelland (Babes in Toyland) nos anos 80. Apesar disso, quando emprestou seus vocais temporariamente para o Faith No More na mesma década, foi demitida, pois a banda alegou querer uma energia masculina. Love decide, então, canalizar sua rebeldia pulsante formando o Hole em 1989, recrutando primeiro o excelente guitarrista Eric Erlandson, e depois outras mulheres. Ela afirmou em uma entrevista que o nome Hole, que significa buraco, faz alusão a uma citação da peça trágica grega Medeia, e também à sua mãe, que uma vez alegou que Courtney não precisava viver com um buraco dentro de si por conta da infância difícil. Além da óbvia referência ao buraco da vagina. De qualquer forma, a escolha do nome da banda já mostrava o caráter confrontador e ambíguo da artista, algo essencial para entendê-la por diferentes camadas e longe de uma perspectiva única e sexista alimentada pela mídia. 


Courtney Love criança. Foto: Facebook pessoal da artista

Courtney em foto promocional para o filme Straight to Hell de Alex Cox em 1986. 
Nele, Courtney contracena com Joe Strummer do The Clash, um dos seus ídolos.
Mas Courtney ficaria mais conhecida por sua participação em outro filme de Alex, Sid e Nancy. Foi nesse filme que Kurt Cobain a viu pela primeira vez. Foto: Reprodução

Courtney Love e Eric Erlandson performando com Hole em 1989. Foto: Reprodução


Com a baixista Jill Emery (Mazzy Star e SuperHeroines) e a baterista Caroline Rue (The Darklings) a bordo, Hole lança os singles "Retard Girl" e "Dicknail". Ambos apresentavam a sonoridade abrasiva que casava com os vocais felinos de Courtney, inspirados essencialmente pelo no wave do Teenage Jesus and The Jerks, com a figura central de Lydia Lunch, e composições ambíguas, mas feministas, uma vez que, ao mesmo tempo que Courtney se culpabiliza, denuncia abusadores. Há uma espécie de catarse em retratar experiências reais (um bando de caras tentou estuprá-la quando trabalhava como stripper) de modo tão cru e alternando perspectivas. Love já utilizava uma linguagem provocativa que encontraríamos mais tarde em LTT quando canta "she was asking for it [...]” [Ela estava pedindo por isso]. Isso foi antes de Kurt Cobain e do movimento Riot Grrrl. Podemos concluir que mesmo antes do impacto dos dois em sua vida, a artista já tinha uma visão sobre gênero e identidade artística consolidadas. 

Hole lança seu primeiro álbum em 1991. Pretty on the Inside foi também meu primeiro álbum da banda quando eu tinha entre 16/17 anos. Me lembro de uma amiga que também foi ex-namorada me passar o álbum por MP3 e eu ouvir no intervalo do Ensino Médio. Naquela época eu já conhecia o álbum solo de Courtney e já era muito fã de Nirvana. Eu também já tinha meu despertar feminista com o Riot Grrrl, The Runaways e lendo sobre mulheres como Pagu. Existia, claro, o impacto visual e de atitude de Courtney sobre mim. Eu ia de batom vermelho para escola às 7 da manhã no interior de Sergipe, não ligava se meu cabelo estava desgrenhado e amava ficar sozinha em casa pela tarde e colocar suas músicas num volume lá em cima para que eu pudesse cantar junto sem vergonha do quão alto minha voz poderia chegar. Pretty on the inside me paralisou naquela manhã. Sou professora de Inglês e sempre tive o hábito de tentar entender o que artistas cantavam. A música foi minha porta principal de afeto pela língua. De repente tinha aquela mulher gritando sobre baixa autoestima na faixa título, falando sobre problemas com a mãe em Teenage Whore, ou sobre aborto em Mrs. Jones, e isso tudo em meio a distorções que te desconsertavam. Kim Gordon do Sonic Youth, que coproduziu o álbum e inspirava Love, pode tê-la rechaçado em seu livro de memórias, mas não nega que ela nasceu para o punk. Mesmo antes de Kurt Cobain, Courtney já tinha provado a sua veia punk, beatnik (devido à poética imagética das letras) e feminista com POTI. Sua arte era dependente de suas experiências pessoais, o que se esperaria naturalmente no álbum sucessor. 


Kat Bjelland do Babes in Toyland na capa do single 'Retard Girl'. Courtney já trazia uma estética vintage e feminina nas artes da banda. O contraste entre o nome da música, as roupas e a pose de Kat deflagram a contestação da feminilidade. Foto: Reprodução 


O post não intenta detalhar tudo sobre a vida de Love, mas é importante frisar que ainda em 1991, ela teve um caso com Billy Corgan do Smashing Pumpkins, que não deu certo, e tempo depois começou a namorar Kurt Cobain, casando e concebendo a sua única filha. Esses detalhes são importantes para entender o álbum de 1994. Quando Courtney estava com Billy, não sabia que ele já tinha uma namorada, e para não sair como "trouxa" escreveu 'Violet' para ele naquele mesmo ano, reivindicando a sua autonomia como quando canta "[...]você deveria saber quando ir, você deveria saber quando dizer não[...]".  Em uma apresentação icônica da faixa no programa de TV musical Later with...Jools Holland em 1995, ela faz questão de zoar o líder do Smashing ao dizer: “Essa música é para um idiota. Eu o amaldiçoei e agora ele está ficando careca.” 

Além disso, quando Courtney começou a sair com Kurt, ele também estava vendo outra artista e ela se sentia incerta sobre a relação. Foi aí que 'Doll Parts' surgiu no banheiro de uma produtora punk em poucos minutos. Lembrando que a composição não seria uma dificuldade para a cantora, já que suas músicas anteriores possuíam uma estética feminina e imagética. "[...] Eu sou olhos de boneca, boca de boneca, pernas de boneca [...]". Enquanto ela é mordaz com Billy, com Kurt ela se mostrou vulnerável. O lado romântico do casal também foi evidenciado com uma caixa em formato de coração presenteado por ela, e inspiração para futuro hit do Nirvana de mesmo nome. Porém, para muitos era difícil aceitar que uma mulher barulhenta, assertiva e artista se relacionasse com o cara que redefiniu o punk, ou seja, um mito. A roupagem de vadia/bruxa/interesseira e o que mais de negativamente pode se associar a uma mulher fora da curva, parecia a única que caberia em Courtney. Assim como foi com Yoko Ono. Porém, ao contrário desta que teve produção de álbuns por John Lennon, Love  recusaria a ter uma participação de Kurt no Hole para além de backing vocals que depois foram suprimidos. O lema "cada um na sua banda" era importante para ela, pois era a sua carreira e identidade enquanto mulher em risco, afinal de contas, Hole foi a sua criação. Mas enquanto o casal saía em defesa um do outro na mídia, um artigo infeliz da revista Vanity Fair de quando Courtney estava grávida agravou a batalha que enfrentava. A jornalista não mediu palavras para piorar a imagem da líder do Hole como mulher, esposa e futura mãe. Mas o que pegou foi a suposição de que Courtney usava heroína mesmo sabendo que estava grávida, o que jamais foi comprovado. Segundo ela, usou até o terceiro mês, que foi quando teve conhecimento da gravidez. Além disso, consideremos a mulher que Frances Cobain se tornou, hoje aos 32 anos. Love pode não ter sido a mãe perfeita, mas ela com certeza teve papel fundamental para que Frances crescesse inserida no mundo as Artes e consciente da importância do seu pai. Mas voltando a 1992, a repercussão do artigo foi capaz de levar a família Cobain a perder a guarda temporária da recém-nascida, o que gerou um corte que ambos, Kurt e Courtney, deixariam sangrar em seus próximos trabalhos. 

A família Cobain fotografada por Les Guzman em 1992 para a revista Spin. É o meu ensaio preferido do casal, pois tem Courtney com seu corpo pós-parto, e Kurt de pijama e ambos têm grafados em suas barrigas escritos que remetem ao que as riot grrrls faziam. Além do mais, é um ensaio espontâneo, algo não convencional para rock stars. A sessão foi transformada em livro e será lançado em junho deste ano.

Comparando a capa (primeira imagem do post) com a contracapa do Live Through This, temos um interessante contraste entre a naturalidade da garota de roupas largas e de pés descalços (que é a própria Courtney) e a garota Miss que foi transformada pela imposição da feminilidade. Apenas por essas imagens já podemos inferir ser um disco sobre a experiência feminina. 


Como se a Vanity Fair não fosse suficiente para assombrar a vida de Courtney, Kurt Cobain morreria 4 dias antes da data marcada do lançamento do álbum em 5 de abril de 1994, eu nasceria exatamente um ano depois. Mesmo o álbum lidando com temas relacionados à depressão, autoimagem, gravidez e outros que serão melhor discutidos abaixo, seu legado ficou marcado como uma premonição da morte de Kurt, e portanto, a obra se tornou para muitos a sombra de um homem. É possível dizer que LTT tem influência do Nirvana ao passo que bebe da fórmula verso suave e refrão pesado (sendo uma influência mais direta do Pixies) e acho que fica por aqui. A utilização de termos como "milk=leite" que também foi empregado por Kurt na faixa 'Milk it' do In Utero, parte da experiência mútua com a amamentação de Frances, além da alusão à heroína e ao esperma. Courtney usa o termo em mais de uma música com os três sentidos. I Think that I Would Die [Eu acho que morreria] é a canção mais explícita sobre a perda da custódia de Frances quando Courtney canta:
"I want my baby
Where is the baby?
I want my baby
There is a baby[...]"

"Eu quero meu bebê
Onde está o bebê?
Eu quero meu bebê
Há um bebê[...]"


Courtney então grita "There is no milk" várias vezes fazendo alusão ao fato de que se ela não tem a filha, não há leite ao mesmo tempo que sua assertividade é uma forma de retrucar a difamação alegando que ela não possui heroína. "Milk" também serve como palavra-chave em "Softer, Softest" e a aparição do termo "witch" na linha "burn the witch, the witch is dead" [queime a bruxa, a bruxa está morta], é uma referência que a artista faz à figura pejorativa criada em torno de si. A mesma palavra foi empregada em "Plump", faixa que lida com dilemas da gravidez como náuseas e do pós-parto como o julgamento dos corpos. Apesar de serem temas que associamos à feminilidade, Courtney desmistifica a romantização da gravidez e do casamento. Ela também rompe com a barreira da imagem feminina em "Miss World" quando canta "Eu sou a Miss Mundo, alguém me mate[...]" criando assim um contraste entre a performance de gênero e um desvio. A faixa foi o primeiro single do álbum e contém um clipe inspirado no filme 'Carrie, a estranha' e dirigido pela aclamada Sophie Muller, além de ser o único com a presença da baixista  Kristen Pfaff, que contribuiu com a letra e faleceu meses após o lançamento do disco. É evidente que isso também contribuiu com a atmosfera sombria que circula sobre Live Through This, uma vez que a música lida com autodestruição, como na referência à poeta Anne Sexton na linha "kill me pills"— ambas Anne e Kristen partiram de formas trágicas. Porém, a letra também faz alusão à treta que Courtney tinha com as Riot Grrrls. 

Quando o movimento punk feminista que incentivava garotas a terem uma voz no mundo formando bandas, fazendo zines, e outros tipos de expressão artística, assim como política, surgiu no início da década de 90 em Olympia liderado por bandas como Bikini Kill e Bratmobile, foi possível perceber mudanças tanto nos palcos quando na plateia de shows. Com o lema "girls to the front", outras bandas de mulheres que não eram Riot Grrrl sentiam a abertura de trazer um discurso mais politizado. Essa consciência do papel feminista da mulher no punk também se deu com a criação da série de eventos do Rock for Choice na mesma época pela banda L7, cujo principal objetivo era arrecadar fundos para grupos pró-aborto. Courtney Love, que já trazia sua bagagem contestadora, influenciou e foi influenciada pelo Riot Grrrl ao estampar capas de fanzines e ao fazer a sua própria "And she's not even pretty" em 1992. No entanto, por conta de conflitos de ideias, dissolução de bandas e fortes críticas que recebiam da mídia e outros artistas, uma vez que o movimento acabou se tornando comodificado, as riot grrrls da primeira fase noventista tomaram outros rumos, mas não escaparam da língua afiada de Courtney, especialmente as mulheres do Bikini Kill. Ela não as rechaçava totalmente, admirava seus ensaios e alguns singles, mas em algum ponto se desentenderam e em Miss World, Love canta: "Kill girls watch when I eat ether [...]" "Garotas do Kill assistam quando eu como éter [...]". É possível deduzir que a líder do Hole chama a atenção para o feminismo delas, já que estava sofrendo sexismo, e não tinha as grrrls para lutar por ela. Além de criticar a revolução feminista proposta por elas em "Gutless": "Revolution come and die". As riot grrrls também são citadas em "Rock Star", que originalmente foi intitulada de "Olympia". Courtney começa a letra com "Quando eu fui para a escola em Olympia." que anteriormente era "Quando eu fui para a escola com Calvin." mas na verdade sua escola punk nunca foi lá. No seu ponto de vista, todos os punks locais passavam pelo medidor Calvin Johnson, músico e dono da influente gravadora indie "K Records" e considerado o mentor da cena, inclusive de Kurt Cobain, que tocou em uma de suas bandas ao lado de sua ex, Tobi Vail do Bikini Kill, e tatuou um K em seu braço. Porém, Kurt denunciou em uma carta não enviada a sua atitude arrogante e elitista por conta do mito criado ao seu redor e Courtney ao mesmo tempo que não poupava suas críticas a rock stars contemporâneos, comprava as brigas de Kurt, também sendo uma figura materna para ele e tornando assim, seu papel mais complexo do que parece. Mas para além da relação intrínseca do álbum com o casal Cobain, há um certo pioneirismo em Courtney ao desmantelar o reinado de rock stars em suas músicas. 



Formação do Hole na época do Live Through This (da esq. à dir.) : Patty Schemel (baterista e que lançou o livro e documentário "Hit So Hard" sobre seus dilemas e os altos e baixos da banda; Courtney Love (vocalista/guitarrista); Eric Erlandson (guitarrista) e Kristen Pfaff (baixista/backing vocal). Foto: Getty Images



Zine feita por Courtney Love. 
Fonte: https://fuckyeahcourtneylove.com/post/115089404293/and-shes-not-even-pretty-zine-by-courtney


Se Courtney criticava punks de Olympia, o mesmo não pode ser dito sobre sua admiração por bandas pós-punk como a Young Marble Giants da qual gravou um cover para "Credit in the straight world" e a into da música seria também utilizada na sua versão de "Old Age", canção descartada por Kurt Cobain na época do Nevermind e dada de presente a Courtney, que amava a melodia e modificou a letra. É possível encontrar a versão de "Asking for it" do Live Through This com o backing vocal de Kurt no trecho "[...] If you live through this with me I swear that I would die for you [...]" "[...] Se você sobrevivesse a isso comigo, eu juro que morreria por você [...]". Apesar do presságio que se interpretou em cima desse trecho, a música em si é sobre o abuso que Courtney sofreu a fazer um stage-dive. A música é importantíssima, pois já era tempo de reavaliar o tratamento machista a mulheres em shows. E ainda é algo parte de nossa luta. Sobre o acontecimento, Courtney revelou: 

"Tínhamos acabado de sair da turnê com o Mudhoney e decidi me jogar do palco. Eu estava usando um vestido e não percebi o que estava gerando na plateia. Era um público enorme e eles estavam enlouquecendo. Então eu simplesmente pulei para fora do palco e, de repente, foi como se meu vestido estivesse sendo arrancado de mim, minha calcinha estivesse sendo arrancada de mim, as pessoas estivessem colocando os dedos dentro de mim e agarrando meus seios com muita força, gritando coisas em meus ouvidos como "buceta-puta-buceta". Quando voltei ao palco eu estava nua. Eu me senti como Karen Finley. Mas o pior de tudo é que mais tarde vi uma foto disso. Alguém tirou uma foto minha bem quando isso estava acontecendo, e eu tinha um grande sorriso no rosto, como se estivesse fingindo que nada estava acontecendo. Mais tarde, escrevi uma música chamada “Asking For It” baseada em toda a experiência. Não posso comparar isso com estupro porque não é a mesma coisa. Mas de certa forma foi. Fui estuprada por uma audiência, figurativamente, literalmente, e ainda assim, eu estava pedindo isso?" 

Sem dúvida, um dos legados de Live Through This foi a abertura na música para temas universais recorrentes a mulheres partindo do ponto de vista pessoal. A luta contra a cultura do estupro se tornou um dos principais temas na maioria das bandas punk/grunge lideradas por mulheres formadas nos anos 90 em diante. Além de muitas adotarem uma estética visual Kinderwhore, cuja origem é atribuída tanto a Courtney Love quanto a Kat Bjelland e as duas sempre tiveram uma relação de amor e ódio, o que é retratado na faixa "She walks on me" do álbum em questão. É evidente que apesar da sua revolução temática e melódica (uma banda grunge liderada por uma mulher vender milhares de cópia e com uma sonoridade mais pop), a irmandade com artistas mulheres de sua época nunca foi o forte de Courtney. No entanto, não acredito que isso deva apagar a importância da obra do Hole para as mulheres na música. Algumas bandas que bebem na sua fonte são Margaritas Podridas do México, Domestic Junkies e Trash No Star do Brasil e The Distillers e Hands Off Gretel dos Estados Unidos. Sua influência chegou até o pop atual, com a cantora Olivia Rodrigo recriando a capa do disco. Assim como no cinema, inspirando o filme cult de terror "Jennifer's body" retirado do mesmo nome de uma faixa.  

Live Through This redefiniu o punk feminino nos anos 90, mostrando de forma mais mainstream que o Riot Grrrl, que mulheres podem ser assertivas, complexas, imperfeitas, habilidosas e desajeitadas e ainda assim, venderem discos. O casamento com Kurt Cobain e a gravidez foram centrais para gerar o álbum, mas ele consegue se sustentar por si. Afinal de contas, por que nunca se fala sobre como In Utero não existiria sem Courtney? 

Que mais mulheres canalizem suas dores, tretas, denúncias, etc. em músicas e outras formas artísticas, pois precisamos continuar ocupando espaços e derrubando o patriarcado. É muito difícil não sentir um empurrão ao ouvir Live Through This. Foi por meio da turnê do álbum que Courtney encontrou forças para sobreviver às perdas daquela época, e podemos encontrar forças em sua obra para sobreviver ao que passamos em qualquer momento das nossas vidas. 



Cantora pop estadunidense Olivia Rodrigo recriando a capa de LTT para divulgar seu álbum Sour em 2021. A capa original foi feita pela fotógrafa alemã Ellen von Unwerth. Foto: Reprodução

Hole durante seu unplugged MTV gótico no dia dos namorados de 1995. A baixista canadense Melissa Auf der Maur (à esquerda) assumiu o lugar de Kristen no ano anterior e seu backing vocal se tornou marcante nos shows. O acústico da MTV comprova ainda mais a versatilidade sonora do Hole. 



Eu com o clipe de Miss World de fundo e segurando minha cópia do LTT. Devo muito a esse disco que me fez acreditar na minha voz e poder continuar aqui, escrevendo sobre mulheres na música. 







 




 


 

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