40 anos de Christiane F.: Entrevista com Thomas Haustein
Thomas Haustein interpretou Detlef, o namorado de Christiane, no filme 'Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída' lançado em 1982 no Brasil. Foto: Tagesspiegel
[Este artigo foi originalmente escrito em 2022, ano que marcou o 40º aniversário do lançamento do filme no Brasil]
Em 1982, o Brasil vivia uma ditadura militar que caminhava lentamente para o fim após quase 20 anos de censura brutal. Muitas obras artísticas e artistas que subverteram os valores tradicionais em qualquer formato foram silenciados de forma diferente. Alguns artistas só puderam lançar suas obras décadas após o fim da ditadura. Nesse mesmo ano, nossos cinemas foram tomados pela chocante história de uma menina alemã de 13 anos, chamada Christiane e seu vício em heroína. O filme era para maiores de 18, mas eventualmente os mais jovens também o viram e leram o livro. Com o intrigante título Eu, Christiane F., 13 anos, Drogada e Prostituída, tanto o livro quanto o filme tiveram forte impacto no país. Por um lado, para jovens que se inspiraram na atmosfera libertária da discoteca SOUND e estilo punk, na trilha sonora de Bowie, nas amizades e amores noturnos, e essa ideia de que os jovens eram levados a sério em relação ao que pensavam sobre o mundo ao seu redor.
Essa deve ser a cena favorita da maioria das pessoas que assistiram ao filme. Correr loucamente e livremente enquanto Heroes de Bowie tocava ao fundo simbolizava que tudo era possível naquele momento, mesmo diante do caos.
Por outro lado, as escolas adotaram o livro como um guia sobre alguém que você jamais deve ser, reforçando valores tradicionais. Christiane F. era, ironicamente, um ícone adolescente e uma criança que os pais não queriam que seus filhos estivessem por perto. Embora o Brasil caminhasse em direção aos valores democráticos, nunca deixou de ser um país muito conservador. Christiane (interpretada por Natja Brunckhorst) também vivia em um país dividido. Mas não foi a única que chamou a atenção do público. Seu primeiro namorado, Detlef (interpretado por Thomas Haustein) também mostrou o lado sombrio de ser uma criança nas ruas e viciada em heroína. Seu relacionamento com Christiane era complexo, assim como ele teve que conciliar isso com dormir com homens por um pico. De fato, todas aquelas crianças de Bahnhof Zoo [estação Zoo] nos intrigam mesmo 40 anos após o lançamento do filme no Brasil, em 1982. Tanto que há uma nova série da Amazon Prime revisitando a história, e o filme original voltou aos nossos cinemas no ano passado (2022) em versão remasterizada e tive a chance única de ver a obra que tanto marcou minha vida quando eu tinha 17 anos. Acho que ela envelheceu bem, e aqui vamos conversar um pouco com Thomas Haustein, que trabalha com assistência social a dependentes químicos desde jovem, sobre o impacto remanescente da obra.
O cartaz brasileiro da versão de aniversário de 40 anos do filme. Tive a sorte de conseguir dois dele!
As crianças de Bahnhof Zoo. Foto: Reprodução
1. Eu li outras das suas entrevistas e numa delas você discute o impacto que tanto o filme quanto o livro tiveram naquela época. Você tinha 14 anos e todos na sua classe leram Christiane F. . Quando você foi escalado para o filme, você também conhecia pessoas ao seu redor que usavam heroína. Como você acha que as coisas teriam sido diferentes se Christiane F. fosse uma história de 2022 [com você tendo 14 anos]?
Hoje há mais atenção a grupos de jovens dependentes químicos e mais possibilidades de centros de reabilitação. A história de Christiane F. foi realmente chocante para a sociedade. Isso abriu nossos olhos.
"[...] Porém, como é comum em muitas cidades grandes, as áreas de grandes estações de metrô/trem concentram sem-tetos, mendingos e muitas vezes viciados (seja em drogas ou álcool). E assim é também a área da estação Zoologischer Garten hoje em dia – há muitos sem-teto por lá. Inclusive, o local onde funcionava uma unidade da polícia – na qual Christiane diz em seu livro ter passado algumas vezes – foi transformado recentemente em um centro para sem-teto. Lá as pessoas podem receber orientação e ajuda. Este novo centro é um complemento para um serviço humanitário que já funciona na Jebensstraße." Fonte: Simplesmente Berlim
2. Acho que todos concordam que todas as crianças que atuaram no filme eram muito realistas. Você se identificou com Detlef de alguma forma? Qual foi o aspecto mais desafiador de interpretá-lo?
Como eu nunca conseguia falar com ele para ter uma impressão pessoal, era um desafio imaginar como ele era... então tentei criar uma imagem fantasiosa dele. A vantagem é que eu também era adolescente, em 1980 eu tinha quinze anos... então, talvez, tive problemas semelhantes, primeiros relacionamentos, fuga da casa dos pais, drama e excesso de confiança, primeiros encontros com drogas... Embora nunca tivesse usado heroína, na década de 1980 tinha muita dela, claro. Havia também muito haxixe, LSD e álcool.
3. Você reencontrou a Natja [atriz e diretora que interpretou Christiane F.] anos atrás, depois de mais de 30 anos sem contato e vocês dois fizeram uma sessão de fotos muito legal em alguns locais do filme. Como foi a experiência? Você tem alguma lembrança especial de Natja e dos locais?
Foi um dia especial… me tocou fortemente… e ficamos conversando por horas… percebemos que moramos no mesmo bairro em Berlim por alguns anos, quase ao lado, e nunca nos encontramos. Engraçado, né?
4. Uma das coisas mais tocantes sobre o filme é como as canções de Bowie podem realmente combinar com a atmosfera das cenas. O filme me transformou [e milhares de outros com certeza] em fã dele instantaneamente quando assisti ao filme na minha adolescência. Os personagens correndo loucamente ao som de Heroes [espero que você não tenha se machucado quebrando aquele vidro], Sense of Doubt sendo tocada em momentos muito tensos. Vemos como Bowie impactou a vida de Christiane F., mas ele também impactou a sua também? E você tem alguma cena favorita com uma música dele de fundo?
Na verdade, eu me machuquei com o vidro quebrado ... era vidro de verdade e uma lasca voou contra meu pescoço e havia um pouco de sangue no corte. Mas eu nem percebi e continuei.
Sim, eu ouvia muito Bowie… mais o LP de vinil Ashes to ashes… que era completamente novo na minha época. Quero dizer que D.Bowie criou música atemporal…e foi abrindo portas para ser tolerante com diferentes desejos de se expressar…de viver a vida e o estilo pessoal que todo mundo quer. Ele era muito Andrógino, brincou com coragem de se realizar e rompia o medo de ser quem ele era.
Segundos antes de Thomas quebrar o vidro. Foto: Reprodução
Natja e David Bowie nos bastidores. Foto: imagens imago/Prod.DB
5. Pensando na influência de Christiane F. hoje em dia, além das cenas chocantes das drogas, acredito que pode ser devido ao fato de que jovens falarem o que pensam ainda é impressionante. Também temos a influência de Bowie em nossa cultura, mesmo depois de sua morte, e gente nova descobrindo o que fazer da vida, algo que sempre aproxima esse tipo de público. Houve também a ruptura com a ideia da Alemanha Ocidental como a “terra da liberdade”. Mas mesmo após outros filmes retratando o uso de heroína como Trainspotting e Requiem for a dream, e mesmo com a queda do muro, a história continua relevante. Além disso, cada pessoa dirá uma coisa diferente quando perguntarem porque Christiane F. ainda importa. O que você acha disso? A história ainda te impacta em 2022?
Sua história também toca nosso presente, pois como a viciada em drogas mais famosa do mundo, ela é um exemplo do desejo de algumas pessoas de fugir das sensações desagradáveis da vida. Por um momento, talvez pareça funcionar incorporando qualquer tipo de coisa, drogas, pílulas químicas e álcool. Mas, por outro lado, elas estão dispostos a pagar um alto preço por colocar em risco sua saúde corporal, mental e social, tornando-se difícil realmente lidar e progredir com esses sentimentos destrutivos.
Você pode encontrar minha análise da segunda biografia de Christiane F. aqui.
6. Por fim, deixe uma mensagem para seus fãs brasileiros que consideram seu personagem uma parte importante de suas vidas e vão adorar saber sobre você. Sinta-se à vontade para falar sobre seus projetos atuais e futuros também. Obrigada, Thomas!
Todos nós somos passageiros do tempo e estamos sentados no mesmo navio. Não devemos esquecer que todos cometemos erros às vezes. É bom se sobrevivermos a eles. Abandone o bastão moral da culpa. Sejamos sempre um pouco graciosos e gentis com nós mesmos. Não esqueça disso…
Um grande abraço de Berlim a todos os brasileiros que me leem. ** Essa mensagem foi enviada em Português pelo próprio Thomas, que fala um pouco da nossa língua já que veio ao Brasil algumas vezes. **
Coordeno um grupo de terapia para viciados em drogas e alcoólatras, visito uma prisão em Berlim e acho que é meu destino defender essas pessoas.
Thomas enviou esta foto especialmente para o artigo. Foto: arquivo pessoal
Você pode ler essa entrevista em Inglês aqui.
Amei a entrevista, parabéns por mais um excelente e inspirador trabalho ♥
ResponderExcluirObrigada pelo apoio de sempre!!! ♥
ExcluirParabéns, amiga, grande conquista! Vi um documentário recentemente sobre a Christiane, é uma história que nunca me fez bem (como todas as histórias de viciados), mas é importante para pensar a sociedade, a educação e a juventude, que só ser livre. Quando pensamos que os pais desses meninos e meninas foram os jovens que sobreviveram à guerra e tiveram que silenciar sobre os seus traumas (para não revivê-los), vemos como, no final das contas, todos estavam desesperados e procurando entender a si próprios nesse mundo perverso. Adorei (e adorei saber que o rapaz está engajado no trabalho social)!
ResponderExcluirObrigada pela leitura e observações amiga! De fato, o contexto político e social é bem importante pra entender porque houve essa epidemia de drogas nos anos 70. Você percebe uma atmosfera derrotista no filme que evidencia bem isso.
ExcluirGostei da entrevista. Muito legal saber que ele seguiu uma carreira que tenta ajudar essas pessoas.
ResponderExcluirObrigada pela visita, volte sempre <3
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