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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Moonage Daydream (2022)

 



Lembro que foi há dez anos que me tornei fã de David Bowie. Eu tinha 17 anos e o conheci através do filme The Runaways que havia visto dois anos antes e que mudou a minha vida. Apesar de Bowie ter exercido uma grande influência na banda de garotas de hard rock, e há cenas fantásticas no filme que mostram isso, era como se eu ainda não estivesse pronta para sua revolução, minha onda ainda era as runaways. Foi quando eu casualmente decidi comprar a versão CD de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars, que enlouqueci na sua viagem cósmica. Na época eu estava em conflito com minha sexualidade e tentando definir quem eu era, e a música de Bowie chegou no tempo certo. Sua imagem também era importantíssima, ela representava um conforto em ser ambíguo, não apenas em sua androginia,  e aos poucos fui entendendo porque Bowie era referência em tantos filmes cult sobre jovens como em Christiane F. e C.R.A.Z.Y. . Não é que Bowie pudesse resolver todos os conflitos adolescentes, mas sua obra pode sim te levar a sonhar e ousar mais para além das limitações em sua volta. Aos poucos fui conhecendo mais discos e as suas personas como Aladdin Sane e Thin White Duke, ao mesmo tempo que curtia o álbum que ele tinha lançado em 2013, The Next Day, que foi um grande comeback após um hiato de dez anos. 
É uma tarefa difícil explicar porque Bowie se tornou um ícone atemporal uma vez que cada pessoa sente seu impacto de maneira diferente, mas ainda assim, histórias de fãs fascinam porque em muitas delas ouvimos como a música de alguém os salvou. É por isso que assistir ao documentário Moonage Daydream de Brett Morgen (Montage of Heck,2015) é essencial para qualquer pessoa que é fã de Bowie, pois foi realizado a partir dessa perspectiva e aquece corações saudosos de um dos últimos grandes rockstars. É também nesse documentário que cada fã pode encontrar seu próprio pedaço de conexão com o camaleão do rock, algo que nem todos docs conseguem oferecer. Mesmo se você não curtir o conjunto da obra, acredito ser incapaz de se fazer totalmente indiferente a ele.  

Eu em 2012 com meu primeiro CD de Bowie, a versão remasterizada de aniversário de Ziggy Stardust e do lado, eu, tempos depois, com a camisa do Aladdin Sane. 


Moonage Daydream tem seu título retirado de uma música de mesmo nome do disco Ziggy Stardust e o documentário alterna entre minutos de performances icônicas das diferentes personas de Bowie (com destaque para a turnê de Ziggy), fotografias, compilados de entrevistas conhecidas, e áudios raros, isso graças ao acesso exclusivo que Morgen teve a 5 milhões de arquivos de Bowie. Vemos o artista  não falar somente sobre o seu trabalho, mas também fazer uma série de questionamentos sobre arte, vida e morte, de maneira que parecem ser dirigidos diretamente aos espectadores e desse modo, nos sentimos convidados a nos afundarmos em sua viagem experimental de mais de duas horas. 
Além disso, somos acompanhados de inúmeros filmes — de Um Cão Andaluz a Corra, Lola, Corra  — o que confirma que David Robert Jones (seu nome real) montou David Bowie a partir de tudo que consumia, mas conseguia ao mesmo tempo, estar à frente do seu tempo. Isso se evidencia também quando Bowie falava sobre sua bissexualidade, como na famosa entrevista com Russell Harty, em que afirma que não existia "sapatos bissexuais", é só lembrar de como tentam categorizar as coisas ao nosso redor como "coisa de mulher" ou "coisa de gay" por exemplo; assim como ele fala que todos nós buscamos ter um papel na sociedade, um papel que fuja às expectativas capitalistas. A entrevista é de 1973 e soa atualíssima. Somos lembrados também de quem instigou essa faísca cultural em Bowie, o seu irmão Terry, que sofria de esquizofrenia e isso o inspiraria tanto na criação do alienígena em Aladdin Sane (um rapaz insano, em Português) quanto na sua incessante busca por horizontes fora do convencional. Foi Terry também quem o apresentou ao movimento literário da Geração Beat. Para suas composições, o camaleão do rock se inspiraria na técnica cut-up de um dos seus escritores, William Burroughs, ao cortar pedaços de frases que advinham da fluidez do seu pensamento e a partir disso, reorganizá-las em novas. 

David Bowie usando o método cut-up. Foto: Universal Pictures/Neon

Um dos pontos mais altos do documentário para mim é a performance de Rock'n'roll with Me da Soul Tour de 74, uma preciosidade de sua discografia pouco lembrada. O produtor de longa data de David Bowie, Tony Visconti, foi responsável pela incrível mixagem de som do doc e por conta disso, proporcionou o mais próximo que pude chegar a um show de Bowie. Foto: Universal Pictures/Neon


De fato, o documentário é centrado no que inspirou David a ser David Bowie, por isso não vemos tantos detalhes sobre sua vida pessoal, somente aqueles que influenciaram seu eu artista; mas imagina ter que mostrar e explicar cada inspiração! Sendo assim, acredito que Morgen fez um ótimo trabalho ao tornar o ritmo de imagens e citações frenético. A única coisa que me incomodou nesse ritmo foi a repetição em excesso de alguns trechos de clipes e filmes de Bowie que poderiam ter sido balanceadas com outros que pouco ou nada aparecem. No entanto, o diretor não apenas joga as imagens, ele brinca com elas para nos situar em momentos notórios da trajetória de Bowie, como V-2 Schneider tocando numa cena do filme Christiane F. e Bowie narrando ao fundo o início da sua trilogia Berlim, ou quando ouvimos a parte do piano nervoso de Aladdin Sane enquanto o próprio Morgen se utiliza do método cut-up e mistura falas de um Bowie paranoico e no auge de seu abuso de substância em Los Angeles, no documentário da BBC chamado Cracked Actor: A Film About David Bowie, e de outra entrevista com Harty, na qual David parece estar em outra dimensão criando assim, um efeito sensacional, ou ainda em referência ao  título do documentário sobre Kurt Cobain, a montage of heck! (uma baita montagem!) 

Até o fato de Bowie ser capricorniano é importante para entender tanto o seu lado reservado quanto o dedicado ao sucesso. Também vemos o seu lado reservado quando temia mostrar suas pinturas acreditando numa reação negativa do público. Temos aqui uma tentativa de descontruir o mito a partir do seu lado vulnerável. Foto: Universal/Neon



The Man Who Fell to Earth ou O Homem que Caiu na Terra é o filme menos querido entre os fãs de Bowie, mas  suas cenas se encaixam tão bem no documentário que aposto que isso levará fãs a revisitá-lo. Foto: Universal/Neon

Em Moonage Daydream, depois de Bowie, quem mais tem voz e vez são seus fãs. Por isso acredito que seja uma obra palpável para a gente, muito mais do que se fosse num formato tradicional com entrevistas tentando capturar toda a sua carreira.  Ao conversarmos após a sessão, podemos passar horas falando o que faltou, o que mais gostou, trocando referências, e essa troca humana é uma das coisas que mais nos faz falta hoje, assim como também sentimos um vazio depois que Bowie partiu e podemos dar continuidade ao seu legado. Eu lembro que quando assisti ao filme no cinema ano passado, deixei a sessão com a sensação de que fiz parte de uma experiência cinematográfica única. A grandiosidade de Bowie não recai somente sobre sua extensa e majestosa carreira, mas também como ele forjou uma relação de curiosidade única com a vida, nos mostrando que há tantas infinitas vidas dentro de uma; e ele explorou isso até quando previu a sua morte no seu último álbum Blackstar. Se a sua morte nos deixou em luto, Bowie quis que mantivéssemos essa curiosidade acesa mesmo em meio ao caos. Depois de muitas perdas nesses últimos anos, Moonage Daydream nos revitaliza para nos reinventarmos e continuarmos nossa viagem, que com certeza, será mais leve se guiada pela sua música. 


"Eu acho que tenho uma curiosidade abundantemente saudável sobre a vida." Foto: Universal/Neon


"Queremos Bowie" grita uma fã em um dos seus shows da década de 80. As passagens com fãs são  destaques do documentário e faz a gente querer estar ali junto partilhando o mesmo êxtase. 





Comentários

  1. Não sou muito fã de filmes que contam, ou tentam, a vida de meus ídolos, mas a sua crítica aguçou minha curiosidade a respeito deste.

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    1. Que legal! Espero que curta o documentário, é um deslumbre visual e sonoro de qualquer forma. :D

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  2. Parabéns pela crítica especializada ao filme! Me incentiva a assitir essa obra?

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    1. Claro, é um deleite sonoro e visual, entre nessa experiência, haha!

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  3. Muito bom Larissa, seu texto é incrível, gosto muito da primeira metade do documentário, mas o fato que você menciona existe uma repetição que traz um certo cansaço e algumas quebradas lineares me incomodaram mas no geral o jogo de imagens é um desbunde. Luiz TNT rock.

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