Minha foto
Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Memoirs of a Beatnik, Diane di Prima (1969)



"Você nunca volta de fato para nada, mas realmente leva muito tempo para entender isso... "
Memórias de uma Beatnik, Diane di Prima (capítulo 10- Verão- p.111)

Através deste blog, já enalteci trabalhos dos maiores expoentes do movimento literário transgressor do século XX, a geração beat. Minha paixão pela turma de mentes iluminadas e desoladas dura anos, mas só recentemente me perguntei porque nunca li uma mulher beat. Tal incógnita me levou a iniciar uma pesquisa a fundo sobre a participação feminina no movimento. Se homens tiveram a chance de buscar uma nova visão, que fugia a amarras estabelecidas, e também, se dentro dos seus relatos, houve mulheres que se mostravam tão desregradas quanto, Jane Lee (Joan Vollmer) em On the Road  de Jack Kerouac, é um claro exemplo, porque não conhecemos aquelas que produziram alguma obra? Joan Vollmer, companheira de Burroughs é analisada por sua audácia e por ser uma voz intelectual em um meio masculino. Aqui, você pode conhecê-la melhor. Quando tive acesso aos trabalhos de Diane di Prima, percebi que ao contrário de Joan, que nunca teve uma obra publicada, Diane vivenciou os prazeres de uma vida boêmia na mesma época em que os companheiros Beat e também transformou sua realidade em literatura.  Joan e Diane são algumas das tantas que fui aos poucos descobrindo, lendo e me fascinando. As mulheres beat não eram mulheres derrotadas como se define um dos significados da expressão. Elas romperam de formas diferentes, mas todas igualmente desafiadoras, lugares impostos por uma sociedade norte-americana  pós-guerra, que aspirava à prosperidade através de valores morais que limitavam a mulher ao núcleo familiar e a ideais de feminilidade. Diane tinha pouco mais de 18 anos durante este período, e em seu livro de memórias deste tempo, vemos uma mulher que trilhou caminhos tortuosos e cuja trajetória seria a narrativa libertária para as mulheres parte de um movimento mais profundo que o Beat na década seguinte. Quando digo mais profundo preciso esclarecer que é em termos de transformações sociais e políticas. Pode-se dizer que o Beat também inspirou o movimento das mulheres da década seguinte por conta de sua natureza libertária. Há também o movimento hippie, porém, o movimento das mulheres foi o que mais se expandiu em termos de ideias e Memórias de uma Beatnik por Diane, foi lançado em uma época em que se buscava por histórias de mulheres que pudessem ser fontes verossímeis de resistência aos valores morais que limitavam a expansão pessoal feminina.

  Diane di Prima em 1954. Seu estilo rompia com o padrão ladylike da época.

Diane inicia sua  autobiografia relatando a perda da virgindade. Não é mais uma daquelas narrativas em que a construção romantizada em torno da virgindade feminina atua. A voz sexual ativa da autora permeia sua obra. "Minha boceta convulsionou em um espasmo que me deixou molhada e ardendo de desejo.". Nos deparamos logo de imediato com o rompimento do tabu  relacionado ao orgasmo feminino. Em todas relações sexuais retratadas ao longo dos capítulos, Diane retrata poeticamente seu momento de prazer. Percebi um paralelo com outra  beat, a poeta Lenore Kandel. As duas foram amigas e compartilharam viagens no período hippie. Lenore assim como Diane, escrevia explicitamente sobre suas experiências sexuais, ressignificando o sexo como conotação espiritual, inspiração budista, em que se podia transcender. Diane emprega simbolismos cósmicos para descrever tanto o prazer masculino quanto o seu. O rompimento com as barreiras normativas através da perspectiva feminina resultou em censura das obras de Lenore, e banalização das de Diane. O lugar da mulher na literatura é por si só desafiador, uma vez que a sua palavra  não é levada a sério como a do homem. Pense em quantas escritoras femininas chegaram lá (Agatha Christie, Clarice Lispector etc). Agora pense no outro sexo. Esse questionamento por si só torna mais instigante ainda conhecer as mulheres beat. Diane surpreende o leitor a cada passo que dá pela Lower East Side de Manhattan.

 Sua prosa cotidiana nos oferece um olhar diferenciado à cidade que nunca dorme. Assim como outros beats, di Prima valorizava os detalhes  despercebidos de uma pequena grande vida em uma grande pequena cidade. Também passou por dificuldades, nunca vistas como verdadeiras dificuldades, como seu apartamento pequeno e aos pedaços.  A calorosa presença humana conferia um ar marcante e belo. Gays, junkies, pessoas sem moradias, enfim, a autora se sentia viva por estar em meio a diferentes pessoas com diferentes anseios; e como Claúdio Willer pontua em sua enciclopédia da geração beat,o agregado de corpos servia como consciência ontológica e política. Quando pesquisei reações dos leitores à Memórias de uma Beatnik, a grande maioria a classifica como unicamente pornográfica. E para aqueles que se interessam por leituras sexuais, as descrições da autora foram insatisfatórias. No entanto, Diane adicionou uma nota no final do livro explicando o motivo pelo o qual o livro é repleto de conteúdo sexual. Seu editor o retornou várias vezes pedindo MAIS SEXO, ou seja, se uma escritora quisesse atrair público, ela teria que se subjugar a uma categoria que obviamente atraí consumidores, e as suas reais motivações literárias ficariam em segundo plano somente porque é uma mulher. Também friso o termo "beatnik"-- tão odiado por Kerouac, mas que se popularizou por conta de adventos políticos da época e que foi adotado para a obra pela mesma intenção de a tornar popular. Temos que repensar a crítica estreita ao que este livro de memórias representou. Repensar com quantos lugares Diane rompeu e quantos outros sua leitura ainda possibilita. Temos uma interseccionalidade LGBT presente na obra. Di Prima não se denomina bissexual, mas suas orgias e amores femininos desconstrói o tabu que envolve o sexo entre mulheres. O male gaze  se faz ausente. Suas transas não são relatadas a fim de agradar o público masculino. A protagonista amou mulheres, as descreveu em suas diferentes identidades e mais importante, proporcionou novamente o orgasmo feminino como uma experiência presente e sem as amarras construídas socialmente. 

Diane di Prima e seu antigo companheiro, Le Roi Jones, conhecido como único escritor negro beat. 
Juntos tiveram uma filha que mais tarde se tornaria atriz, produtora e ativista, Dominique di Prima.

Finalizo esta crítica com a parte da obra que, sem dúvida, demarca Diane como autêntica voz na geração beat. Diane ouve falar que Kerouac e Ginsberg se encontram na cidade. Seu anseio em conhecê-los se concretiza numa noite em que o primordial êxtase os une sexualmente. Kerouac lambe o sangue da menstruada Diane, que observa Allen  transar com  parceiros. Allen examina os escritos de di Prima enquanto Kerouac fica cada vez mais chapado. A revolução sexual que os beats impulsionaram naquela época nada mais era que um dos  marcos da contracultura. Uma revolução com proporções ainda maiores em movimentos posteriores. Diminuir a obra da autora à pura pornografia é negar seu espaço transgressor no papel que a literatura pode desempenhar em uma sociedade  que ainda elege presidentes que freiam a liberdade feminina.


Embora o encontro entre os beats seja intrigante-- eles tentam a posição tibetana yab-yum-- houve uma falta de detalhes que transmitisse a integração das pessoas que anos após aquela noite, se tornariam um grandioso grupo. Escrevo isso porque a obra foi publicada uma década depois da eclosão dos beats. Apesar disso, Diane tem a  consciência de que existe um mundo antes e após Howl de Ginsberg ter sido publicado. O grande pontapé da vanguarda beat, "abria terreno" para centenas de pessoas como eles. O seu estilo de vida foi acolhido por seus irmãos e irmãs que juntos, correspondiam-se, amaram-se, publicavam uns aos outros e assim temos a pequena visão da sensibilidade beat através de um olhar feminino. 


"O poema [Howl] colocava certo peso em mim também. Conclui que, se havia um Allen, devia haver muito mais, outras pessoas, além de meus poucos amigos, escrevendo o que diziam, o que ouviam, vivendo, ainda que de maneira furtiva ou envergonhada, o que conheciam, escondendo-se aqui e ali como fazíamos-- e agora, de repente, prestes a se manifestar abertamente."
(p.196)

Atualmente pesquiso sobre as mulheres beat e publico minhas notas através deste site abaixo:

https://mulheresgeracaobeat.wixsite.com/beat/

Comentários

  1. Demais ,Adorei!!!Já conhecia essa galera, mas agora ao ler seu texto pude aprender muito mais.parabéns!!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Miriam, obrigada pela apreciação, volte sempre. Em breve mais textos sobre outras mulheres beats <3

      Excluir
  2. Maravilhada com essa possibilidade de conhecer mais sobre as mulheres beats..
    Grata

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Popular no Blog...